A DANÇA E O SAGRADO

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A Dança e o Sagrado


Texto originalmente publicado na Revista Jung & Corpo nº 9, 2009.

 

Numa sessão de terapia, conversava com uma paciente sobre uma dificuldade sua. Ela, uma mulher de 32 anos, gosta muito de dançar flamenco. Há alguns anos vem se dedicando a aprender esta modalidade de dança, mas sente-se sempre insatisfeita com seu desempenho. Quando pensa no que esta dança lhe traz, estabelece associações com força, beleza, firmeza, sacralidade, pureza. No entanto, ao executar seus passos, fica presa, “travada”, incapaz de se soltar e refletir toda exuberância e significado que o flamenco tem para ela. Este fato, evidentemente, pode ter inúmeras interpretações, mas elas não dizem respeito a este texto. O que quero abordar aqui é parte do diálogo que tivemos.
Como ela associou à dança um caráter sagrado, falamos sobre espiritualidade, e eu lhe sugeri que dançasse como se fizesse uma oferenda aos deuses. Ao que ela exclamou, quase que num protesto: “Não posso!”. Quando lhe perguntei por que, ela me disse: “Porque é sensual!”.
Esta observação vai de encontro à idéia de o corpo, com suas diferentes expressões, ser primordialmente associado ao profano. Porém, o que caracteriza o profano e o distingue do sagrado?
Eliade ([1956], sem data), em seu livro O Sagrado e o Profano, caracteriza o sagrado como algo que ocorre em um tempo fora do tempo, numa reaproximação do tempo mítico, o tempo do início (illo tempore). É sagrado também aquilo que existe num temenos, num espaço sagrado, ou consagrado. Assim, tempo e espaço, ao adquirirem um significado além do cotidiano, ao se transformarem em elementos “extra-ordinários”, ao propiciarem vivências transcendentes, são sacralizados. Na linguagem da psicologia analítica, o sagrado é o simbólico, pois esta é a característica que nos transporta, e a todas as nossas experiências, para além do óbvio.
O símbolo, para Byington (2008), é a célula-tronco da psique. Graças a ele, podemos nos conectar com os significados mais profundos de nossas vivências. Os símbolos e as funções estruturantes são os veículos dos arquétipos, que, para Jung, são os fundamentos universais da psique, nossa energia primordial. Enquanto que, para Jung ([1948], 1985), os símbolos são “a máquina de transformar energia”, Byington afirma que símbolo e função estruturantes, vistos como entidade e dinâmica, são capazes de transformar a energia psíquica e estruturar e desenvolver a consciência. Por exemplo: a dança é um símbolo; o dançar, uma função estruturante.
Quando estamos frente a uma situação que, sabemos, não se reduz à sua aparência ou superfície, mas nos aponta para algo mais, estamos diante da vivência consciente de um símbolo. Embora todas as situações possam ser vistas como simbólicas, nem sempre temos consciência de seu significado. Esta falta de consciência pode fazer com que uma experiência não seja vivida em toda sua abrangência, ficando aquém de sua possibilidade e, portanto, sendo profanada, ao invés de sacralizada. Se enfocarmos a vida valorizando a dimensão simbólica, ela será mais plena de sentido. A dança, bem como o corpo, é um símbolo. Como tal, ambos possuem potencial para a sacralidade.
No símbolo pode haver tanto o predomínio do aspecto pessoal como do coletivo. É assim também com a dança. Ainda que seja a pessoa que execute os passos, com suas características físicas, rítmicas, de sensibilidade, entrega etc, a dança pode estar inserida num ritual que envolva todo um povo, um grupo ou comunidade. Na dança ritual, o corpo se torna território mítico, sacralizado pelo significado da vivência grupal.
Na dança, a expressão corporal em sua dimensão objetiva, concreta, física, senso-perceptiva, sempre inseparável da subjetividade, das emoções, sentimentos, memória, encontra terreno fértil para se expandir ainda mais e expressar o coletivo, o universo mítico, as tradições folclóricas, religiosas, ou ainda os ritos associados a situações existenciais ou de iniciação. Unindo o físico, o emocional e o espiritual, a dança propicia uma vivência de totalidade.
Nas palavras de Wosien, citado por Gomes (2003):
A dança é a linguagem figurativa mais imediata que fluiu do hálito do movimento. Ela é tida, enfim, como o primeiro testemunho da comunicação criativa. Nos povos que ainda atribuem um sentido ao invisível, a dança é, ainda hoje, pedido de oração. Nela, o homem consegue exteriorizar todos atos primevos da alma, desde o medo até a entrega libertadora. (p.127)
Desde a pré-história, a dança faz parte da vida do homem – na verdade, é inseparável da espécie humana. Na descrição feita no site da Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM), a respeito das pinturas rupestres na Serra da Capivara, no Piauí, podemos ler: “quatro temas principais aparecem durante os seis mil anos atestados de existência desta tradição[1]: dança, práticas sexuais, caça e manifestações rituais em torno de uma árvore.”
Há a hipótese de que as pinturas rupestres desenvolvidas no período paleolítico tenham sido realizadas por xamãs, que reproduziriam imagens de suas visões quando estavam em transe. Quando estas pinturas representam o ser humano, com freqüência ele está caçando ou dançando, visto que a dança era, já nesta época, uma maneira de o homem entrar em contato com a divindade. Sabemos que muitos povos tribais realizam suas cerimônias – sejam elas fúnebres, iniciáticas, ou associadas às atividades cotidianas, como a caça – através de danças, especialmente danças circulares.
Sobre estas, nos diz Machado (2005), em seu artigo Danças Circulares e Suas Correlações Psicofísicas, Espirituais e Integrativas:
Nos períodos mesolítico e neolítico as danças circulares possuíram motivos ou finalidades variadas, expressando de algum modo a relação com o sagrado. Dançava-se para atrair chuva, para favorecer a caça ou a pesca, para agradecimento às divindades ou para rogar perdão, para favorecer a colheita ou para pedir a cura de algum enfermo, e assim por diante. (p.52)
Origens Míticas da Dança
Lucianus (séc.II), referindo-se à dança, diz que:
Podemos dizer que a dança surgiu no começo de todas as coisas, e veio à luz junto com Eros, aquele primeiro, pois vemos esta dança primeva surgindo claramente na dança do coro das constelações, nos planetas e nas estrelas, em suas ondulações e mudanças, numa organização harmoniosa. (in Coomaraswamy, p.66-67)
Para vários povos, a origem da dança é mítica. Para os guaranis, de acordo com Menezes (2008), Nhanderú, uma divindade guarani, ensinou a dança e mandou dançar a dança – o seu surgimento confunde-se com a própria existência Guarani.
Menezes (2008) descreve relatos orais, coletados nas aldeias Guarani, nos quais a dança guarani surge com a criação do mundo.
No estudo sobre a música Guarani, relata que a experiência de contato com a divindade é realizada através do corpo, o qual vai se transformando, de pesado e agressivo, para alegre e saudável. A idéia nos cantos e nas danças é que essa emoção se transforme em sentimento, que tenha duração no tempo, condição para se conseguir o aguyjé, a perfeição. (…) quando o Guarani dança, tem uma sensação de paraíso, uma vivência de estar num outro lugar ou estado, e que essa sensação de paraíso pode ser prolongada, ainda que essa capacidade seja sempre testada no cotidiano. (p.9)
(…)
A desordem, que é vivida de uma forma singular dentro da comunidade Guarani, em sua própria estrutura mitológica, provoca o ato da dança. É no movimento que o Guarani encontra Nhanderú. A dança–rito coloca o corpo e o espírito em movimento num espaço de não rigidez, dentro de uma indissociável relação entre drama e sagrado. (p. 12)
Montardo (2002), citado por Menezes (idem), registra a crença de que, para os Guaranis, existe vida na Terra porque eles a estão cuidando, e este cuidar passa pela tríade: cantar, rezar e dançar.
Existe também um relato sobre o surgimento mítico da dança na Índia. Deuses e deusas pediram a Brahma que criasse um quinto Veda[2], que falasse ao homem comum. Brahma então, utilizando elementos dos outro quatro Vedas (palavras, movimentos comunicativos, canção e sentimento), criou o chamado Natya Veda, encarregando o sábio Bharata de escrevê-lo como Natyashastra[3] e executá-lo para Shiva. Assim Bharata propagou a dança pela Terra (Gaston, in Naidu, 2006).
Outra origem mítica da dança envolve a deusa Parvati e Usha, sua filha com o demônio Banasura. A mãe ensina a filha a dançar e esta, por sua vez, ensina esta arte às gopis(pastoras) da cidade onde nasceu Krishna. Esta versão reconhece Shiva como o Supremo Dançarino. Ela dança com Parvati e juntos ensinam esta arte aos outros deuses e deusas. Pouco a pouco a dança celestial passou para o mundo humano e resultou nas formas de dança praticadas hoje na Índia (Naidu, 2006).
A Dança de Shiva
Proveniente da Índia, o mito de criação associado a Shiva Nataraja, ou o Senhor da Dança, nos diz que este deus cria e destrói o universo através de sua dança que, com seus movimentos ritmados, representa o próprio pulsar da vida, “a manifestação da energia rítmica primal” (Coomaraswamy, 1976, p.66). A atividade cósmica é o motivo central da dança.
Nas escrituras referentes a Shiva (e também nas de Krishna) é proeminente a concepção de que o mundo é um passatempo ou diversão (lila) do deus, sendo sua dança fruto de sua própria natureza, espontânea e sem propósito, já que Seu ser está além do reino dos propósitos.
Em seu livro The Dance of Shiva, Coomaraswamy (1976) menciona vários textos sânscritos que descrevem e atribuem significados à representação de Shiva Nataraja. Não sendo o intuito deste artigo abordar detalhadamente esta representação, faço aqui uma breve síntese das diversas visões apresentadas, convidando o leitor interessado a consultar o texto original.
Shiva Nataraja é representado com quatro braços, sendo que em uma das mãos direitas possui um tambor (damaru), associado ao som, de onde surge a criação; com a outra, faz o gesto de não temer, dando esperança e proteção; em uma mão esquerda segura o fogo, do qual sobrevêm a destruição e a transformação; na outra, aponta para seu pé esquerdo, que está levantado e simboliza o dar alívio, refúgio e eterna bem-aventurança para a alma. Com o pé direito pisa em um demônio, representando o abrigo àqueles que lutam com o fardo da casualidade (karma). Toda a imagem está apoiada num lótus, do qual sai uma circunferência coberta de chama, e que é tocada pelas mãos que sustentam o tambor e o fogo.
De acordo com Coomaraswamy, Shiva Nataraja executa várias danças, dentre as quais Tandava e Nadanta. A primeira, é realizada nos campo de cremação, compreendidos não como o lugar onde os corpos são queimados, mas o coração de cada um de seus devotos. “O lugar onde o ego é destruído significa o estado no qual a ilusão e os feitos são queimados; este é o crematório onde Shri Nataraja dança” (idem, p.73).
Nadanta é realizada diante de uma assembléia em Chidambaram, local considerado o centro do mundo. Segundo a lenda, sábios (rishis) hereges estavam numa floresta, e para lá se encaminharam Shiva, fazendo-se passar por mendicante, e Vishnu, disfarçado como uma mulher linda, esposa de Shiva, ambos acompanhados da serpente Ati-Sheshan. Logo as esposas dos rishis se sentiram atraídas por Shiva e eles, por Vishnu. Quando desconfiaram das aparências, quiseram acabar com Shiva através de magia. Primeiro, um tigre, criado a partir de fogos sacrificiais, atirou-se sobre o deus para destruí-Lo. Este arrancou a pele do animal com a unha de seu dedo mínimo e a jogou sobre Si, como se fosse um manto de seda. Os rishis enviaram então uma serpente, que foi morta e colocada por Shiva ao redor de Seu pescoço. Começou então a dançar. Querendo ainda destruir Shiva, os sábios enviaram sobre Ele um último monstro, na forma de um anão, Muyalaka. Com a ponta do pé o deus quebrou a coluna da criatura, mantendo-a presa enquanto recomeçou sua dança, assistida por deuses e rishis, que reconheceram estar diante do Senhor do Universo.
O propósito de sua dança era retirar o véu de ilusão da percepção dos sábios. A destruição da ilusão, de maya, faz com que permaneçam apenas o eterno e imortal.
A Suprema Inteligência dança na alma (…) com o propósito de remover nossos pecados. Deste modo, nosso Pai dispersa a escuridão da ilusão (maya), queima o fio da causalidade (karma), esmaga o mal [ignorância] (mala, avidya), chove Graças, e amorosamente mergulha a alma no oceano de Bem-Aventurança (ananda). (Unmai Vilakkam, in Coomaraswary, 1976, p. 74)
Coomaraswamy considera a concepção da dança de Shiva como uma síntese entre ciência, religião e arte.
Nenhum artista de hoje poderia criar mais sábia e exatamente uma imagem daquela Energia que a ciência tem que postular por trás de todos os fenômenos. Se fôssemos reconciliar o Tempo com a Eternidade, dificilmente poderíamos fazê-lo de outro modo que pela concepção de alterações de fase estendendo-se sobre vastas regiões do espaço e grande períodos de tempo.(…)
Na noite de Brahma, a Natureza está inerte, e não pode dançar até que Shiva assim o deseje. Ele emerge de seu transe e dançando manda, através da matéria inanimada, ondas pulsantes de som despertador, e a matéria também dança, surgindo como uma glória em torno dEle. Dançando, Ele sustenta seus fenômenos multiformes. No tempo completo, ainda dançando, Ele destrói todas as formas e nomes pelo fogo, e toma novo repouso. Isto é poesia, mas não menos, ciência. (idem, p.78-79)
Capra ([1975], 1987), estabelecendo uma relação entre a mitologia e a física de partículas, compara a dança de Shiva Nataraja à dança das partículas sub-atômicas, compondo e destruindo a matéria. A esse respeito, escreve ele em seu livro O Tao da Física:
Há centenas de anos, artistas indianos criaram uma série de belas imagens, em bronze, de Shiva dançando. Em nossa época, os físicos usaram a mais avançada tecnologia para representar os padrões da dança cósmica. A metáfora da dança cósmica unifica a antiga mitologia, a arte religiosa e a física moderna. Cada partícula sub-atômica não apenas desempenha uma dança de energia, mas é também uma dança de energia; um processo pulsante de criação e destruição (…) sem fim. (…) Para os físicos modernos, a dança de Shiva é a dança da matéria sub-atômica. Como na mitologia hindu, é uma dança contínua de criação e destruição envolvendo todo o cosmos; a base de toda existência e de todos os fenômenos naturais. (p.185)
Essa analogia fez com que, em 2004, uma estátua de 2m de Shiva Nataraja fosse instalada no CERN, Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear, em Genebra.
Fonte:http://www.jungnapratica.com.br/danca-e-o-sagrado/
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