REPENSANDO O ASHTANGA VINYASA YOGA



Este artigo vem propor a ampliação de horizontes no Ashtanga Vinyasa Yoga, questionando a ausência de meditação, essencial para se atingir profundidade no Yoga, bem como do estudo dos sutras e outras escrituras, a fim de trazer consistência e amadurecimento para as práticas.

Quando comecei a praticar o método ensinado por Pattabhi Jois, minha mente se encheu de questionamentos relacionados ao que eu ouvia e lia sobre o tema e o que via realmente á minha volta. Começando pela inspiração para o nome do método, o Ashtanga Yoga de Patanjali e considerando a devoção ao estudo dos sutras que observamos em Iyengar, A.G. Mohan, T.K.V. Desikachar e outros relacionados à linhagem de Krishnamacharya. Era de se esperar que o Yoga clássico, ou pelo menos o Yoga Sutra, fosse o alicerce filosófico, a pedra fundamental onde se erigisse a construção do ensino e da prática do Ashtanga Vinyasa Yoga.
Nas publicações a respeito do método é comum ver-se a exposição de conceitos do Yoga Sutra, quer dizer, em tese menciona-se algo sobre os angas, em teoria até fala-se dos valores do Yoga, mas observando o modus operandi das aulas de Ashtanga, pode-se perceber que, na prática, a coisa não funciona bem assim. Há um distanciamento muito grande entre os ensinamentos do sábio Patanjali e o que se vê nas salas. A começar pela didática habitual que parece não deixar espaços nem dar importância para os conhecimentos da tradição do Yoga, dando uma ênfase excessiva a detalhes e tecnicismos dos asanas, contagens de respiração e ajustes.
Exclui-se a meditação sob a alegação de se manter a 'pureza' e a 'fidelidade' ao método. A Falta de tempo não é desculpa, pois pode-se aumentar um pouco a duração da aula ou diminuir as repetições de posturas como navasana, urdhva dhanurasana, e até mesmo suprimir, se necessário, variações de algum asana como paschimottanasana, por exemplo. A repetição (abhyasa) é importante, mas não é necessário que seja aplicada em demasia numa mesma prática, pois o próprio sutra 1:14 adverte que a estabilidade (drdhabhumi, 'solo firme') surge quando há dedicação e desempenho correto por um 'longo tempo' (dirgha kala).
Quanto à 'pureza' do método, sabe-se que o Yoga sempre se adaptou às necessidades humanas. É nessa adaptabilidade que reside sua força e também de onde resulta sua longevidade, amplitude e eficiência. Se o Yoga não se transformasse, estaríamos até hoje fazendo as práticas do yoga pré-clássico: mantra, meditação, controle respiratório e rituais. Além do mais, falando-se em tradição, nada é tão antigo e tradicional em Yoga como meditação, a não ser, é claro, os conhecimentos vêdicos. Mas é evidente que estes surgiram através das revelações de origem meditativa dos sábios e rishis.
Uma reflexão: É difícil acreditar que as pessoas - provavelmente apresentadas ao método através da badalação da mídia - no fim de um dia estressante - distantes de si mesmas ainda imersas no torvelinho das obrigações do dia a dia - consigam chegar á aula e 'desligar-se' disso tudo desempenhando uma prática adequada de Yoga, sem ter a experiência e a percepção adquiridas com a prática da meditação e da vivência dos yamas e niyamas.
Como esperar uma atitude de dharana, tapas, svadhyaya e ishvara pranidhana na prática de pessoas que ignoram estes conceitos e ainda por cima chegam à aula atordoadas pelo ritmo louco de suas rotinas, depois de enfrentarem o tráfego das cidades e vão direto praticar sem um relaxamento, reflexão ou meditação inicial que os prepare mentalmente para o Yoga?
Como fazê-las compreender que não devem buscar no Ashtanga somente saúde, um corpo esculpido ou a capacidade de fazer posturas difíceis sem lhes deixar claro que esses são meros resultados naturais de uma busca muito maior de conhecimento (vidya), liberdade (moksha) e plenitude (ananda)? Será que o Ashtanga Vinyasa Yoga e nós professores estamos cumprindo o papel de encaminharmos os praticantes em sua própria senda de auto-descoberta?
Um olhar atento pode verificar que há uma certa frivolidade no meio, pouco investimento pessoal em estudo das escrituras e auto-estudo (svadhyaya), além de um excesso de preocupação com a forma. Isso tudo demonstra que dentro da prática e ensino desta modalidade, não se utilizam todos os angas do caminho óctuplo.
O objetivo deste artigo não é fazer uma crítica estéril, mas propor a busca de novos horizontes, porém baseados em antigos pilares do Yoga: conhecimento e meditação.
Apesar de nunca ter professado a metodologia convencional, respeito todos os professores que a utilizam, por quem, aliás, tenho gratidão, pois eles me deram valiosos ensinamentos. Não tenho a pretensão de revolucionar uma didática já difundida com sucesso, mas trazer sugestões e propostas, pois certamente não sou o único que pensa assim. Deixo a sugestão de Paulo de Tarso que diz para 'Examinar tudo e reter o que for bom'.
O método é muito procurado por modismo, por pessoas que querem emagrecer e geralmente é visto como uma 'malhação' indiana. Os professores ficam sem o direito de reclamar disso enquanto perpetuarem esses padrões de ensino e essa atitude de passividade e resistência á mudanças (que já não são apenas necessárias, são urgentes!).
Muitos praticantes de Yoga têm preconceito em relação ao Ashtanga Vinyasa, o que é compreensível diante da inconsistência conceitual e prática com que pretende representar o verdadeiro Ashtanga Yoga.
A realidade é que se defrontarmos o Ashtanga Vinyasa com o Yoga dos sutras e de seus comentários principais (bhashyas), encontraremos inúmeras incoerências. É necessário muita imaginação para encontrar rastros do Yoga clássico na prática moderna de Hatha-Yoga organizada por Pattabhi Jois.
Apesar disso, não precisamos desistir do método, pois este ainda pode vir a ser um autêntico caminho de Yoga. Mas para isso acontecer, ele deve realmente basear-se no sistema proposto por Patanjali, pois deste o Ashtanga Vinyasa só utilizou o nome. Fora isso, a semelhança entre os dois é como a da água e a do azeite.
Pattabhi Jois sempre diz: 'Pratique e tudo acontecerá', mas para que aconteça, não é necessário apenas que a pessoa saiba como praticar de forma adequada, mas fundamental que haja discernimento (viveka). Uma conquista impossível sem uma consciência construída no estudo, reflexão e vivência dos shastras para orientar o processo da prática. Segundo Patanjali, não se consegue a capacidade de discernir (vivekakhyatir) sem meditação. A verdade é que essa frase de Pattabhi Jois, é uma excelente desculpa para quem quer eliminar o estudo do Yoga ou evitar questionamentos dos alunos.
Técnicas do Ashtanga Vinyasa Yoga
Segue agora, uma interpretação livre das técnicas utilizadas na prática de Ashtanga Vinyasa, onde acrescentei dharana por crer que esta técnica deve permear todas as outras, servindo como base para sua execução adequada. Dharana, o sexto anga, é a introdução no processo da meditação, o estágio inicial do que Patanjali chamou de antaranga (membros internos, chamados conjuntamente de samyama). Quando realmente concentrados, estamos também consequentemente em pratyahara e iniciando o caminho para o samadhi, que pode vir a ocorrer.
Dharana
Segundo a Kshurika Upanishad, dharana (concentração) é a adaga (Kshurika) que desfaz, que corta o nó da ignorância (avidya granthi). Quando estamos dispersos não participamos do que fazemos, perdendo a capacidade de observar a nós mesmos e às coisas, pessoas e situações à nossa volta com exatidão, captando assim apenas parcelas da realidade, dentro e fora. É como um profundo estado de alienação.
Pramana, a percepção real das coisas, é o resultado de nossa concentração e esta, por sua vez, o aprofundamento da atenção. O poeta William Blake disse: 'Quando as portas da percepção estiverem abertas, tudo parecerá ao homem tal qual é, infinito. Pois o homem se enfermou a tal ponto que não consegue enxergar senão através das fendas estreitas de sua caverna'. Vivenciamos quase o tempo todo esse estado 'enfermo' de alienação, ficando impedidos de ver a realidade.'A vida como um domo de vidro multicolorido mancha a branca radiância da eternidade' (Shelley). Qual o filho pródigo da parábola, ficamos 'perdidos', muito distantes da 'casa paterna' (desidentificados com nossa própria natureza - svarupa). Inebriados pela loucura mundana, entorpecidos pelo hedonismo e pela dispersão, acabamos por nos perder de nós mesmos ('vrtti sarupyam itaratra' y.s 1:4).
Como no mito da caverna de Platão, essa percepção parcial da realidade só nos possibilita ter uma visão indireta, na qual só enxergamos as projeções de sombras vindas do mundo exterior nas paredes da (nossa) caverna, mas nunca os seres e objetos como realmente são. Ou como disse o apóstolo Paulo de Tarso: 'pois agora vemos como por um espelho, em parte. (...) Mas então veremos face a face'. Quando tivermos a capacidade de nos manter constantemente concentrados, atentos ao desenvolvimento, ao fluir de nossas existências, 'veremos' e vivenciaremos então, somente aquilo que é real ( tada drashtuh svarupe avasthanam y.s 1:3 ).
Asana
Num estilo de Yoga que demonstra tanto envolvimento com ajustes, alinhamentos, alongamentos, tônus muscular, padrões posturais e com seqüências tão longas e variadas de posições, pode-se ter a ilusão de que o asana é um fim em si mesmo, ou que é o objetivo do Yoga. Que a postura bem executada é aquela que se expressa numa forma perfeita, padronizada e bela em termos de plasticidade. Esse é um erro comum, mas é um grave engano, pois essa beleza plástica é apenas a parte periférica do asana, sua 'casca'. O mais importante acontece dentro, em níveis mais sutis e profundos, num vasto universo psicoenergético.
O grande acontecimento do asana consiste na percepção das sensações, sentimentos e emoções que ele provoca e nas reflexões que disto resultam: na observação dos fluxos de energia, sendo desobstruídos e direcionados de forma específica em cada postura; na expansão e contração da força pelo corpo e na relação existente entre todos esses fatores.
No entanto, a principal atuação dos asanas em nossa vida, está no trabalho de transformação que acontece através de um treinamento de nosso esforço e autocontrole, vontade e persistência, aceitação e paciência.
Para que haja eficiência, o praticante deve estar ciente de que os asanas são eficazes ferramentas para a busca de si mesmo, mas deve saber também que eles são caminhos e não a 'chegada'. Ele deve ter o mínimo de noção sobre o que é Yoga, quais são seus fundamentos, reais objetivos, enfim, no que consiste uma verdadeira prática e qual é a atitude ideal perante ela.
Vinyasa
O vinyasa é uma técnica definida pela associação sincrônica entre movimento e respiração. Para executá-lo devemos guiar nossos movimentos pela respiração, aprendendo a expressá-los tendo esta como referencial.
Vejo-o como a arte de saber movimentar-se, pois ele facilita e 'educa' as conexões neurais denominadas sinapses, tornando ágil a transmissão da vontade para o sistema nervoso e sua transformação em ação.
Quando executado com a noção correta, o vinyasa torna-se uma regulação dos ritmos internos. O fluxo dos pensamentos é regulado pelo da respiração que, por sua vez, é afinada com os movimentos internos e externos do corpo.
O ritmo do coração (batimentos cardíacos, circulação), pulmão (movimentos de expansão e contração respiratória), os movimentos do fluxo de prana (circulação dos vayus), o ritmo da atividade mental e os movimentos externos do corpo devem se tornar unos, sintonizar-se no vinyasa. Algo simples e óbvio: o ritmo dos movimentos corporais imprime uma resposta imediata na velocidade da aceleração cardíaca e na respiração. Essa, por sua vez, influenciará a mente, ajudando a definir o 'ritmo' e o teor dos vrtts. Segundo a Hatha Yoga Pradipika e o Yoga Vasishtha existe uma relação intrínseca entre a circulação e as características do prana e os estados mentais (citta avastha). A mente infuencia o prana e este interfere na mente, assim como as correntes e as ondas do mar se infuenciam mutuamente e dependem uma da outra. Conclui-se então que a circulação do prana responde ao processo mental e respiratório. Movimento, sangue, respiração, prana e pensamentos são integrados no vinyasa.
O vinyasa deve se transformar num movimento natural do corpo, fluido, leve e harmônico. Deve ter uma característica de facilidade e leveza, servindo como uma espécie de descanso ou intervalo entre o esforço dos asanas. 'A natureza nunca se cansa, pois repousa em movimento', diziam os antigos. O vinyasa deve acontecer de forma naturalmente fácil, como é quando respiramos ou caminhamos. Porém, isso só acontecerá depois de muita prática, e a atenção deve ser plena, pois sem a devida consciência nesse processo e através da repetição e da facilidade adquirida com esta, o vinyasa acaba por se tornar mecânico, como o ato de dirigir ou mastigar, atividades que fazemos geralmente sem atenção, no 'piloto automático'. E é exatamente essa atenção que é o diferencial entre naturalidade e automatismo. Só ela pode transformar a prática de Ashtanga em uma 'meditação em movimento', como pretendem muitos. Embora seja necessário lembrar que esta não substitui a meditação tradicional que consiste em sentar-se de forma estável e concentrar-se, colocando-se na perspectiva de observador consciente (sakshi ou drashtuh).
A concentração profunda no fluxo respiratório e em cada movimento associado torna o vinyasa natural, um movimento vivenciado pelo corpo e também pela mente atenta. No entanto, quando não há atenção suficiente, não há vivência, nem experiência e tão pouco aprendizado real. Então, o vinyasa se torna automático, um movimento inconsciente, um condicionamento, com certeza saudável, porém apenas mais um condicionamento.
Pranayama
É comum que o termo pranayama seja traduzido como exercício respiratório. Isso ocorre devido à mesma pobreza conceitual que classifica o asana como um exercício físico e yogi como aquele que os executa com beleza e facilidade.
Pranayama é 'expansão consciente do prana', um exercício de domínio da energia vital que torna mais eficiente sua absorção e distribuição. Deve ser realizado com conhecimento do que se faz, pois é o aspecto mais sutil da prática de Ashtanga e, ao mesmo tempo, o mais importante do ponto de vista fisiológico.
A respiração deve fazer a 'ponte', a ligação entre corpo e mente. É um grande engano crer que simplesmente dominando a técnica do ujjayi, no que tange ao seu som e sensações peculiares, estamos realizando pranayama. Esta atividade acontece muito mais no plano da mente e requer uma sensibilidade para a percepção do prana no corpo, além de treinamento da vontade e controle mental para expandir essa energia para onde houver necessidade.
O ujjayi, sobretudo, é um pranayama maravilhoso para servir como 'foco' de concentração e meditação, aumentando a concentração na prática de asanas. Seu som assemelha-se ao de várias manifestações naturais: o som do vento, das ondas do mar, de um contínuo e leve crepitar de chamas e até mesmo o sibilar das serpentes, lembrando-nos o tempo todo a idéia da unidade de tudo e a origem comum de todas as coisas que formam a prakriti (natureza).
Bandhas e Drishtis
Com tantos condicionamentos e superficialidades na prática dos asanas, pranayamas e vinyasas, como podemos fazer o aluno entender a devida importância dos bandhas e drishtis?
Se o enfoque está todo no externo, plasticidade, imagem, no aparente, naquilo que pode ser visto, é difícil surgir interesse em uma técnica interna, que para o leigo pode parecer desnecessária e, ainda, de difícil execução. A verdade é que a maioria dos praticantes não realiza os bandhas ou os fazem durante uma reduzida fração da prática, quando não os fazem errado. Não sei se é solução ficar 'martelando' comandos para fazer os bandhas o tempo todo. Sem um ensinamento que crie um interesse real, as pessoas o farão por poucos instantes, apenas como uma obrigação 'chata' cobrada pelo professor. É necessário que se ensine um rudimento de anatomia e fisiologia sutil, que se explique como funciona o bandha num âmbito energético e a importância de sua execução correta e domínio, ajudando a economizar a energia e canalizá-la, tornando a prática mais 'leve', reduzindo o esforço físico, estruturando a coluna, facilitando os saltos e, principalmente, vitalizando as estruturas superiores pela elevação da energia.
Os drishtis se referem à exploração de novos ângulos e perspectivas de visão. No mundo moderno olhamos demais para fora, para o outro, preocupamo-nos em demasia com a nossa imagem e com a das pessoas. Os drishtis são uma forma de mudarmos o enfoque do olhar, restringindo-o ao campo espacial do asana. Apesar de olharmos para o próprio corpo, no olhar do drishti não deve haver espaço para avaliação ou julgamento do que estamos vendo, é um olhar de concentração. Nele aprende-se a não se interessar e não se distrair com o cenário à sua volta, decoração da sala, roupas e corpos de outras pessoas ou o seu próprio. É ekagrata, um foco criado pelo direcionamento da atenção visual.
Conclusão
Por fim, quero dizer que não devemos apenas incluir a meditação como uma das práticas do Ashtanga Vinyasa, mas adotar uma atitude meditativa, de compreensão e contemplação durante todo o processo. Vendo todos os aspectos da prática como 'motivos' de meditação. Enxergando com maior profundidade a beleza de cada técnica e concebendo-as como oportunidades de compreender as metáforas da natureza implícitas em nós: o drishti nos ensinando que é preciso ter uma visão reta nas situações da vida; os bandhas elevando a energia e demonstrando o caminho da ascensão da força (kundalini); a constância ininterrupta do pranayama nos recordando a eternidade; a mudança, transitoriedade, fluidez e o impermanente simbolizado e vivenciado no vinyasa; a estabilidade, a permanência que nos remete ao ser representado na firmeza e imobilidade do asana.
Tento ensinar aos alunos que saber fazer as séries de Ashtanga não é uma meta de realização. E crescimento no Yoga é vivenciar os yamas e niyamas e estar sempre atento, como uma testemunha desperta (sakshi).
Que não há melhor 'ajuste' do que adaptar nossos desejos às necessidades reais, desenvolvendo simplicidade e contentamento. E que o melhor 'alinhamento' é o dos pensamentos com a fala e as atitudes, trazendo convicção e veracidade para a vida, tornando o yogi transparente e íntegro.
Om shantih, shantih, shantih.

 Por Rodrigo Carvalho *


*Rodrigo ensina Ashtanga e Hatha Yoga em Belo Horizonte e ministra cursos de Yoga e Ayurveda pelo Brasil. Se quiser fazer contato com o autor, escreva para vinyasavidya@yahoo.com.br. Obrigado! :)

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