A FORMA DE VIDA DOS MONGES FRANCISCANOS SEGUNDO PESQUISA DE GIORGIO AGAMBEN


A pesquisa de Giorgio Agamben mostra como os monges franciscanos relacionavam a liturgia ao modo concreto do seu exercício, reivindicando uma coessencialidade de “regra” e “vida”

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Nos textos da série Homo Sacer, Agamben anuncia uma quarta parte da pesquisa, na qual as noções de “forma-de-vida” e de “uso”, em cuja direção convergem suas investigações arqueológicas, se mostrarão na sua luz própria. O primeiro volume publicado nessa seção de Homo Sacer é Altíssima pobreza: Regras monásticas e forma de vida (Homo Sacer, IV, I, 2011). O ensaio desenvolve uma indagação a respeito da vida monástica dos séculos 4 ao 13, e em particular sobre a teoria franciscana do usus pauper das coisas, que identifica como um “uso” irredutível à propriedade, por meio do qual os padres tentaram se subtrair ao direito. Altíssima pobreza é publicado contemporaneamente a Opus Dei: Arqueologia do ofício(Homo Sacer, II, 5, 2012), o texto em que culmina a genealogia teológica do governo encaminhada em O reino e a glória (Homo Sacer, II, 2;2007), e do qual constitui, em certo sentido, a pars construens. Se Opus Dei traz à luz o modo como a liturgia eclesiástica, elaborando a função sacerdotal, procura capturar a práxis contingente do homem e fazê-la coincidir no sacramento com a ação de Deus, Altíssima pobreza mostra o nascimento dos monastérios cristãos como uma tentativa de desativar o dispositivo litúrgico, de inverter a subordinação do agir particular do sacerdote ao governo divino, que se formula ligando a eficácia do sacramento à sua realização por meio da própria vida do monge. A pesquisa mostra como os monges relacionam sempre a liturgia ao modo concreto do seu exercício, reivindicando uma coessencialidade de “regra” e “vida”, na linguagem do fransciscanismo uma forma vitae, que o texto indica como “uma vida que se relaciona tão proximamente à sua forma a ponto de dela resultar inseparável”.
Embora Agamben afirme que a forma-de-vida, este “algo inaudito e novo”, na vida comum dos monges “se aproximou obstinadamente à própria realização e lhe faltou com a mesma intensidade”, ele tenta desenvolver e radicalizar a relação entre “regra” e “vida” formulada pelo monasticismo, mostrando-a como uma oscilação sem solução entre vida e lei, fato e direito, que revela um terceiro, um meio entres eles, que em referência ao franciscanismo ele indica como um novo possível “uso” comum da vida e das coisas.
“Regra (regula)” é o nome do texto que ordena a vida do monastério, isto é, cada comunidade de monges faz referência a uma regra enquanto documento constituinte. Agamben observa a impossibilidade de se atribuir as regras a um gênero literário definido; essas são às vezes uma série minuciosa de preceitos, que dizem respeito a cada detalhe isolado da vida dos monges, em alguns casos a transcrição fiel de um diálogo que tem lugar no monastério ou, mais amiúde, apenas o relato sobre a vida do monge fundador. Os estudiosos das regras não as definem propriamente como leis, mas tampouco as consideram simples indicações, “conselhos”. Com efeito, os preceitos das regras, referindo-se aos menores detalhes da vida de um monge, relacionando-se com a totalidade da existência, não podem ser entendidos como obrigatórios, ou seja, um monge isolado jamais poderia pô-los todos em prática, e, portanto, não se constituem em um conjunto de leis que ele deveria aplicar à realidade. “O que é uma regra?” – pergunta Agamben – “se esta parece confundir-se sem resíduos com a vida? E o que é uma vida humana, se esta não pode mais ser distinguida da regra?”.

A adesão do monge à regra não consiste na observação de preceitos determinados, mas diz respeito à relação entre a regra e a vida e entre a vida e a regra. Aquele que entra no monastério “não se obriga, como acontece no direito, ao cumprimento de atos isolados previstos na regra, mas coloca em questão o seu modo de viver, que não se identifica com uma série de ações nem se exaure nelas. (…) [Como escreve Tomás,] ‘os monges não prometem a regra, mas viver segundo a regra’. (…) O objeto da promessa aqui não é mais um texto legal a ser observado ou uma certa ação ou uma série de comportamentos determinados, mas a mesma forma vivendi do sujeito”.

Vida comum do monastério

Se o monge vive cada momento da sua vida em relação à regra, esta não é uma lei, mas, afirma Agamben, a “forma” que permite a cada momento constituir-se como “exemplar”, “paradigmático” da vida comum do monastério. Em que sentido o exemplo e o paradigma permitem pensar a coexistencialidade de regra e vida que caracteriza a comunidade cenobita? No texto Signatura rerum: Sobre o método (2008), Agamben afirma que “o paradigma é um caso isolado que vem separado do contexto ao qual pertence, apenas na medida em que este, exibindo a própria singularidade, torna inteligível um novo conjunto, cuja homogeneidade ele próprio deve constituir. Dar um exemplo é, portanto, uma ação complexa, que supõe que o termo que funciona como paradigma seja desativado do seu uso normal, não por ser deslocado em um outro âmbito, mas, ao contrário, para mostrar o cânone daquele uso, que não é possível exibir de outro modo”.
O exemplo é uma forma de conhecimento que não procede articulando universal e particular, na medida em que põe em questão a sua oposição dicotômica: na lógica paradigmática, é somente a exibição do caso isolado como exemplar que define a regra constituindo um conjunto. Nesse sentido, o exemplo é um terceiro entre o universal e o particular, entre a regra e a vida, que não aparece, porém, senão através da relação dúplice entre eles, a sua indiscernibilidade. Para o monge, abandonar o contexto normal e seguir a regra é transformar cada aspecto da própria vida em “exemplar” da vida comum, enquanto é uma exibição da sua singularidade que, somente em virtude dessa exibição, se constitui como pertencente a um conjunto. Isso permite compreender por que amiúde o texto da regra consiste somente na narração histórica da vida do fundador do monastério: é a própria exibição de cada aspecto de sua existência como exemplar que constitui a comunidade.
As pesquisas sobre a noção de potência que acompanham as indagações políticas de Homo Sacer permitem aprofundar na lógica do exemplo e caracterizar ulteriormente a relação entre regra e vida. Agamben, em particular nos textos da segunda seção de Homo Sacer, chega a mostrar a potência como o que resta retido no ato e, portanto, o revoga, mas não se coloca por isso como uma dimensão separada, cujo subtrair-se permanece em relação com o ato enquanto aquilo que o abre sempre em uma nova determinação, para um “novo uso”.
Se a regra consiste apenas na exibição da singularidade de um momento da vida, que, sem fazê-lo sair do plano do singular, o transforma em exemplar de um conjunto, é por expor a sua singularidade a partir da sua potência, como aquilo que nele se subtrai e, portanto, o revoga de seu uso normal, mas não o isola de tal modo em uma esfera distinta, ou seja, não o revoga senão para mostrá-lo em relação com um outro momento singular.
Os monges, executando cada ação segundo a regra, experimentam a potência desta como aquilo que constitui a sua exemplaridade, por revogá-la e ao mesmo tempo abri-la sempre em uma nova ação. Uma forma que consiste apenas na exibição de uma singularidade a partir da sua potência, e que assim a coloca sempre em relação com uma outra singularidade, é uma forma-de-vida sempre em devir, coincide com a sua transformação, assim como a comunidade à qual ela dá lugar.
Liturgia eclesiástica
O dispositivo litúrgico funciona colocando no seu centro o agir singular do sacerdote, mas o determina como ofício por fazê-lo coincidir no sacramento com o governo divino. A liturgia tenta, em tal modo, se apropriar da potência do agir do homem e governá-la, enquanto ela é a única coisa a partir da qual se pode realizar toda ação, mas ao mesmo tempo aquilo que impede sua determinação unívoca, aquilo que torna possível cada atualização determinada, mas abrindo-a sempre em uma nova configuração. Todavia, essa potência escapa de uma captura, a práxis do homem não se deixa identificar com o governo divino, enquanto este precisa sempre remeter circularmente a uma ação singular na qual possa realizar-se. Se a liturgia procura sempre de novo capturar a potência do agir do homem e confiná-la na esfera separada do sacramento, os monges reivindicam esse círculo, “apagando a separação e, fazendo da forma de vida uma liturgia e da liturgia uma forma de vida, instituem entre as duas um limiar de indiscernibilidade carregada de tensões”.
Em virtude da subordinação do agir concreto do sacerdote ao ofício realizada pela liturgia eclesiástica, o sacramento resulta eficaz mesmo quando conferido por um ministro “indigno”, o que, do ponto de vista da relação entre regra e vida, resulta impossível: “para uma vida que recebe o seu sentido e a sua condição do ofício, o monasticismo contrapõe a ideia de um oficium que tem sentido somente se se torna vida”. A regra leva os monges a viverem sua vida como uma “prática incessante”, no cenóbio “cada gesto do monge, cada atividade mais humilde se torna uma obra espiritual, adquire o estatuto litúrgico de um opus Dei”. Segundo Agamben, todavia, o monasticismo, ligando os singulares aspectos da vida comum ao serviço de Deus e à sua celebração, não consegue resolver sua relação com a liturgia; tampouco deixa entrever uma relação inédita entre norma e fato, ser e agir, uma forma-de-vida como âmbito de sua oscilação irresolúvel, de sua sempre nova configuração.
O sintagma forma vitae era usado nos monastérios franciscanos como reivindicação consciente de uma vida não subsumível ao direito positivo. Os monges a perseguiam praticando a renúncia a qualquer propriedade como pobreza e usus pauper das coisas. Eles foram combatidos pela cúria romana precisamente porque uma tal prática se situava em uma esfera sobre a qual o direito civil não tem nenhum domínio. Mas no que consiste um uso das coisas que não possa jamais se tornar uma apropriação?
Os franciscanos o definiam em geral negativamente, como um “usar da coisa como não própria”, expondo-se assim, porém, às objeções da cúria, em particular do papa João XXII que, na bula Ad conditorem canonum, refutava a possibilidade de  separar uso e propriedade, identificando o uso com uma consumação – que se resolveria então com a posse – dos objetos essenciais à vida dos padres, como comida ou roupa. Esta objeção, todavia, conduzira os franciscanos a conceber o uso de maneira não negativa. Francisco de Ascoli, por exemplo, escrevera em resposta ao papa que, assim como o ser das coisas consumíveis coincide com sua transformação, e não é, portanto, redutível a uma propriedade, o uso é sempre in fieri, consiste no seu devir.
Bonagratia de Bergamo, por sua vez, indicou o usus pauper como a prática que define originariamente a comunidade dos homens, na medida em que comum pode ser apenas o uso das coisas mas jamais a sua posse. Essas reflexões, considera o texto, poderiam ter conduzido à formulação de uma teoria do usus como habitus, prática que jamais se substancialize em um ato determinado, enquanto, ao contrário, o franciscanismo continuou a defini-lo em geral de forma negativa, prestando-se às críticas da liturgia eclesiástica que se tornara predominante. “Ao invés de confinar o uso no plano da pura práxis” – escreve Agamben – “como uma série factícia de atos de renúncia ao direito, teria sido mais fecundo tentar pensar a sua relação com a forma de vida dos padres franciscanos, perguntando-se de que modo aqueles atos podiam se constituir em um vivere secundum formam e em um hábito. O uso, nessa perspectiva, poderia ter-se configurado como um tertium em relação ao direito e à vida, à potência e ao ato, e definir – não apenas negativamente – a própria práxis vital dos monges, sua forma-de-vida”. Pensar o uso como a dimensão da tensão irresolúvel entre regra e vida, da regra como exposição da vida, e da vida como aquilo que reenvia sempre a uma nova regra, equivale a pensá-lo como uma terceira dimensão, que, enquanto lugar de seu remetimento sempre renovado, consiste apenas na sua transformação, se dá sempre como “um novo uso”.
Em tal sentido, o habitus e o uso emergem como a forma de uma “vida que se mantém em relação não só com as coisas, mas também consigo mesma no modo da inapropriabilidade”, que os próximos volumes da quarta seção de Homo Sacer deverão permitir caracterizar ulteriormente.

Por Valeria Bonacci*, na revista Cult

*Valeria Bonacci é doutora pela Universidade de Lecce em cotutela com a Universidade Sorbonne-Paris IV e colabora com a cátedra de Filosofia Prática da Universidade La Sapienza de Roma.

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