REFLEXÕES ACERCA DO LIVRO "SABER CUIDAR" DE LEONARDO BOFF - DÉBORA SUELI DE SOUZA GUEDES



Reflexões Acerca Do Livro Saber Cuidar De Leonardo Boff


Neste livro Boff traz uma reflexão acerca do cuidado e da compaixão, pelos outros e também pelo planeta Terra. Em sua proposta, direciona o leitor a uma reflexão crítica sobre os problemas do mundo, onde a falta de atitudes de cuidado são os sintomas dos maiores problemas da humanidade. De acordo com o autor, degradação ambiental do planeta, as relações superficiais entre as pessoas e a falta de conhecimento de si mesmo, levam a falência da Terra. 

O autor apresenta crítica ao realismo materialista, a então filosofia de sustentação do cientificismo tecnicista atual, tecendo uma critica acerca da razão analítica, ditame da nossa sociedade pós-moderna, sociedade esta que se configura pelo encapsulamento do existir, um existir individual que não oferece espaço para o cuidado. Posto isso, o autor propõe um novo ethos, um modo-de-ser-essencial (re) significando as formas de agir e resgatando o cuidado inerente á existência humana. 

Leonardo Boff desenvolve a sua obra utilizando-se de fábulas e mitos, para apresentar a origem do homem e o significado do cuidado, sendo a essência do ser humano, o saber cuidar. Para o autor, o homem apenas constitui-se homem, a partir do cuidado, cuidado esse essencial a sua condição. Com a fábula-mito do cuidado elaborada por Higino, o autor explica o sentido do cuidado para a vida humana como forças que atuaram nos universais mais importantes: o céu (Júpiter), a terra (Tellus), a história e a utopia (Saturno). A partir desta fábula, ele aprofunda as suas várias dimensões na vida pessoal, social e planetária do humano. Como indicação para o caminho certo, Boff aponta uma nova ternura para com a vida e um sentimento (pathos) autêntico de pertença a Mãe-Terra no modo de ser essencial por meio do "cuidado essencial". 


Apresenta então dois conceitos cruciais desta obra, as formas de ser no mundo: a do trabalho e a do cuidado. O modo-de-ser-no-mundo pelo trabalho é o de interação e de intervenção na natureza. Já o outro modo de ser-no-mundo se realiza pelo cuidado em que a relação não é sujeito-objeto, mas sujeito-sujeito. Ainda neste contexto, Boff traz a ideia do cuidado em relação às formas de cuidar, a falta de cuidado no mundo atual, e o que seria necessário para amenizar esse mal, resgatando a re-espiritualização como um dos remédios da humanidade, o cuidar como prioridade de vida. 

Em seguida, Boff, propõe uma "cultura acústica" do cuidado como o amor sendo um fenômeno biológico, um equilíbrio ou medida justa, uma carícia essencial, uma cordialidade fundamental e uma compaixão radical que podem ser concretizadas com o planeta e todos os seus seres numa espécie de inversão da cultura e práxis em vigor na ética mundial. A proposta desta obra, é uma nova ética para a conduta humana nas relações com o meio e com o outro, partindo para uma nova ótica. Para tanto, o autor apresenta caminhos para a cura e o resgate da essência humana, de modo que o homem deve passar por uma alfabetização ecológica, revendo os hábitos de consumo, aprendendo a conviver, a mostrar seu carinho e sua generosidade, alimentar o amor, o contato humano, aumentar a capacidade de sentir, aprendendo a cuidar do planeta, sempre envolto em uma ética de cuidado. 

Vivemos na era pós- moderna, era da morte de Deus e da assunção da razão técnico-cientifica. Neste contexto impera o capitalismo como produtor e reprodutor de ditames do existir humano, tendo como matéria-prima a subjetividade humana, de modo que " o neocapitalismo convoca e sustenta modos de subjetivação singulares, mas para serem reproduzidos, separados de sua relação com a vida, reificados e transformados em mercadoria: clones fabricados em massa, comercializados como 'identidades prêt-à-porter'." ( ROLNIK, 1997, p.03).

Neste contexto percebe-se um homem desamparado, fragmentado diante de uma sociedade liquida, onde não existem grandes verdades, onde as relações são técnicas e superficiais, onde cada um deve falar e cuidar apenas por si. Constata-se que "(...) o ser humano da modernidade entrou num aceleradíssimo processo de secularização. Não precisa de Deus para legitimar e justificar pactos sociais. A religião persiste mas não consegue ser fonte de sentido transcendente para o conjunto da sociedade." (BOFF, 1999, p. 21).

Deste cenário, surge a angustia, angustia geradora de sofrimento, um sofrimento solitário, posto que, como aponta Critelli apud Lima (2001), a partir da modernidade efetivou-se o "fenômeno de desenraizamento da existência" de modo que o homem não consegue ligar-se com os outros, com o mundo e lidar com o seu desamparo constitutivo. Neste sentido, Boff aponta em sua obra, que a única saída possível para esse "caos" que é o existir humano na sociedade contemporânea, seria o cuidado que segundo clássicos dicionários de filologia,
alguns estudiosos derivam cuidado do latim cura. Esta palavra é um sinônimo erudito de cuidado, usada na tradução de Ser e Tempo de Martin Heidegger. Em sua forma mais antiga, cura em latim se escrevia coera e era usada num contexto de relações de amor e de amizade. Expressava atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estimação. ( BOFF, 1999, p.90-91).

O autor clarifica o cuidado como uma atitude de desvelo, solicitude para com um outro, que deve acima de tudo ser amado, pois o cuidado verdadeiro, pontua o autor, só acontece quando existe uma pré-ocupação genuína com o outro.

De acordo com Lima (2001), na Grécia clássica a prática do cuidado de si era indissociável ao cuidado do outro, com a influência moderna da cultura romana, essa lógica muda substancialmente, de modo que "o cuidado de si não é mais pressuposição do cuidado do outro. O cuidado de si tautologicamente torna-se fim em si mesmo" (LIMA, 2001, p.185).

Entretanto, para Boff, o cuidado é inerente a condição/constituição humana, ou seja, o autor pontua o cuidado como essência da humanidade (...) Não se trata de pensar e falar sobre cuidado como objeto independente de nós. Mas de pensar e falar a partir do cuidado como é vivido e se estrutura em nós mesmos. Não temos cuidado. Somos cuidado. Isso significa que o cuidado possui uma dimensão ontológica que entra na constituição do ser humano. É um modo-de-ser singular do homem e da mulher. Sem cuidado deixamos de ser humanos. (BOFF, 1999, p.89).
O autor vem propor um novo cogito: "cuido logo sou". Entretanto se esse cuidado, é inerente ao humano, porque ele ainda não percebeu, e colocou em prática essa forma de existir e comporta-se? Porque o homem moderno ainda se prende a existência do controle, da busca incessante pelo acúmulo de capital, pela competição, pela destruição do outro, outro esse preponderante a sua existência? Trazendo esses questionamentos para o campo da saúde, a coisa torna-se ainda mais complexa, pois nós profissionais e futuros profissionais não deveríamos ser mais sensíveis ao cuidar, não deveríamos nos prestar a outro, assumindo a nossa condição essencial de existência: cuidando? Talvez a inerência do cuidado humano ainda precise ser descoberta, pois na maioria das vezes não se sabe de fato nem o que é ser humano.
Desse modo a iniciativa do cuidar, principalmente no contexto da saúde tem sido problematizada, seja na mídia, a partir de escândalos envolvendo descaso, seja nos círculos intelectuais, na busca por re-significações e estratégias de intervenção. Neste sentido é valido destacar a necessidade de formulação de Política Publicas específicas para "humanizar" o atendimento aos usuários do sistema de saúde .

Neste escrito nos deteremos a Política Nacional de Humanização e a política de Atenção Integral à Saúde do Homem como arquétipo. Observando o panorama da saúde no Brasil, constatou-se que os homens são mais vulneráveis às doenças, sobretudo às enfermidades graves e crônicas, e que morrem mais precocemente que as mulheres (BRASIL, 2008).
Apesar destes indicativos os homens não procuram os serviços de atenção primária ( FIGUEIREDO apud BRASIL, 2008).

Seja devido a aspectos culturais ou deficiências no sistema de saúde, o fato é que os homens habituaram-se a evitar o contato com os serviços de saúde, seja nos consultórios médicos, seja nas unidades básicas de saúde. Desse modo, resistentes à prevenção e ao autocuidado, os homens chegam aos serviços de saúde tardiamente, tendo como porta de entrada a atenção especializada, resultando em elevação dos custos com a saúde, aumento do sofrimento físico e emocional para si e para as suas famílias. (BRASIL, 2008).

Tendo em vista esse cenário, e reconhecendo que os agravos do sexo masculino constituem verdadeiros problemas de saúde pública, o ministério da saúde junto a gestores dos SUS, sociedades científicas, sociedade civil organizada, pesquisadores acadêmicos e agências de cooperação internacional, implementou em agosto de 2008, a A política de Atenção Integral à Saúde do Homem, formulada com o objetivo de promover ações de saúde inseridas na linha de cuidado que resguarda a integralidade da atenção e está alinhada à Política Nacional de Atenção Básica, porta de entrada do Sistema Único de Saúde. (BRASIL, 2008).
Essa política envolve cuidados tanto da Atenção Básica com foco na Estratégia de Saúde da Família, quanto nos demais níveis de atenção, no que diz respeito à promoção, prevenção, assistência e recuperação da saúde, além de chamar a atenção para a responsabilidade dos três níveis de gestão , na prática da humanização, integração das demais políticas, articulação intersetorial, reorganização das ações de saúde, estímulo a co-responsabilidade de entidades da sociedade organizada, aperfeiçoamento do sistema de informações em saúde e realização de estudos e pesquisas a respeito da saúde do homem. (BRASIL, 2008, p. 5).
Desse modo, muitos agravos poderiam ser evitados caso os homens realizassem, com regularidade, as medidas de prevenção primária, ou seja, se cuidassem. Entretanto a prática do cuidado, na nossa sociedade ainda fervorosamente machista, é sinônimo de feminilidade, de sensibilidade, apenas as mulheres são preparadas para cuidar, cuidar do outro, cuidar dos filhos, cuidar de si mesmas. Assim o "cuidado foi difamado como feminilização das praticas humanas, como empecilho a objetividade na compreensão e como obstáculo á eficácia" (BOFF, 1999, p. 98).

De modo que para os homens o cuidado não se apresenta com tanta inerência a sua existência, o homem não se percebe enquanto cuidador, nem mesmo de si quem dirá do outro. De outra forma não haveria a necessidade da criação de uma política especifica de cuidado para o homem. Ainda no contexto das políticas publicas, cabe-nos destacar a Política Nacional de Humanização (PNH), que foi implementada pelo Ministério da Saúde em 2003, como reflexo de uma discussão acerca dos modelos de atenção e de gestão vigentes, pautados numa perspectiva "mecanicista" de atendimento e cuidado ao usuário do SUS. A implementação dessa política visa priorizar atendimento e cuidado humanizado nas instâncias da saúde.

Neste sentido, a PNH propõe, fundamentalmente, tornar efetivos os princípios norteadores do Sistema Único de Saúde, por meio de transformações nos modos de cuidado, bem como nos modelos de atenção e gestão da saúde. Para isso, propõe uma participação integrada entre a equipe (Intersetorialidade), buscando principalmente desfragmentar os saberes dos profissionais da área de saúde em relação ao modelo de gestão e atenção, os quais devem ser pensados inseparavelmente. Diante de tais propostas, a Humanização é entendida como uma política transversal, á medida que busca produção, compartilhamento de saberes, e a necessidade de um do olhar sensível, por parte dos profissionais, ás singularidades dos usuários, bem como a valorização da autonomia dos mesmos quanto às questões relacionadas á saúde. Portanto, tal política deve "traduzir princípios e modos de operar no conjunto das relações entre profissionais e usuários, entre os diferentes profissionais, entre as diversas unidades e serviços de saúde e entre as instâncias que constituem o SUS". (BRASIL, 2004, p.07).
A PNH apresenta então uma proposta significativa para a reformulação do funcionamento do sistema público de saúde. Trata-se de uma política relativamente nova, mas com objetivos claros e bem definidos de por em prática os princípios que fundamentam o SUS. Mas o que seria mesmo humanização? Humanizar, está relacionado à valorização do humano, das singularidades, das características mais particulares desse humano. Essa ideia ainda é bem complexa para poder ter apresentado um significado exato. E é devido a essa complexidade, que o "fazer" proposto por essa política só será alcançado a partir de alianças, de união entre todos os segmentos da sociedade, principalmente a comunidade.

Desse modo pode-se pontuar que o principal pressuposto da Política Nacional de Humanização é: Olhar de forma diferencial as subjetividades, as necessidades particulares de cada pessoa, em um contexto de atendimento coletivo e equânime. Retomo assim a questão da inerência do cuidado a condição humana: onde está/esteve este cuidado? Foi preciso que se criasse uma política de "humanização" para que os profissionais revissem a forma de "cuidar" do outro que está em sofrimento? E ainda assim, a maioria das práticas dos profissionais da área de saúde continuam enrijecidas pelo modelo técnico-mecanicista. Essas iniciativas são plausíveis, significam que ainda tentamos criar estratégias para nos defrontar com a realidade do descuido, do descaso com os outros.

Entretanto realizar mudanças, neste agir, neste se colocar diante do outro, desestabiliza, nos tira da zona de conforto. Dessa forma, iniciativas recentes como Política Nacional de Humanização e a política de Atenção Integral à Saúde do Homem, são "sementes" das quais somente veremos os frutos daqui a um longo tempo, tempo este em que talvez tenhamos compreendido o que de fato é o cuidado, se é que um dia poderemos ter essa compreensão para além da falácia teórica, mas no plano da prática, da experiência.

Considerações Finais


Neste sentido ainda há muito o que evoluirmos no nosso acontecer humano, para que possamos, como acredita Boff, alcançar o ponto ideal de equilíbrio entre a falta e o excesso de cuidado, e assumirmos a essência do cuidado em nosso existir, posto que " não se pode ser apenas cuidado. Ele é a essência do humano, mas o humano não é só a sua essência. Existe a historia ziguezagueante, as ressonâncias do cuidado, as limitações que cabe acolher e revelar" (PASCAL apud BOFF,1999, p.161).

Leonardo Boff vem propor através da sua obra uma verdadeira re-significação do que é ser humano em essência e cuidado, de modo que em alguns trechos do livro transparece certo "romantismo" ao se tratar das posturas e comportamentos diante do mundo e dos outros. Entretanto Compreende-se aqui, o cuidado muito mais como uma postura ética diante do existir e lidar com os outros com as coisas que fazem pano de fundo nas nossas vidas, sabendo tratar coisas como coisas, e pessoas como pessoas, não o contrário.

Talvez um dia sejamos capazes de um cuidar incondicional, um cuidado em não precisemos nos esconder da dor e do sofrimento, onde possamos nos doar ao outro sem nos esconder por traz das mascaras da instrumentalidade, da técnica, da coisificação. Talvez o humano seja ainda uma porção de argila, á margem de uma sociedade capitalista e liquefeita, entretanto com possibilidade de auto moldar-se ao rigor de uma ética do existir e relacionar-se com os outros.


Referências


Acolhimento nas práticas de produção de saúde / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. - 2. ed. - Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2008.
ADORNO, T.W. & HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. BOFF, Leonardo. Disponível em: . Acesso em 17 out. 2010.
BOFF, L. Referencias Biográficas. Disponível em: .Acesso em 17 out. 2010.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano- compaixão pela terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde do homem. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
Falk, Maria Lúcia Rodrigues et al . Contextualizando a Política Nacional de Humanização: a experiência de um hospital universitário. Disponível em: < http://74.125.155.132/scholar?
Humaniza SUS: Política Nacional de Humanização: 

a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS / Ministério da Saúde, Secretaria-Executiva, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. - 
Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
LIMA, D. F. Os "Sentidos" da Escuta Fenomenológico-Existencial. Dissertação de Mestrado. UNICAP 2001.
ROLNIK, S. Toxicômanos de Identidade. Conferencia na X documenta. Kassel, 1997.


POR: DÉBORA SUELI DE SOUZA GUEDES

Fonte: PORTAL EDUCAÇÃO - 
http://www.portaleducacao.com.br/educacao/artigos/21696/reflexoes-acerca-do-livro-saber-cuidar-de-leonardo-boff#!5#ixzz2zQCFFhPd

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