O CORPO INVISÍVEL : O DEPOIMENTO DE UMA ANORÉTICA



O Corpo Invisível
Apesar do conflituoso ambiente familiar, fui uma criança feliz, creio que como todas as outras. Afinal, ser criança é, por naturalidade, ser feliz. E, embora talvez já um pouco descrente no mundo, cresci saudável, sociável, muito ativa e alegre.

Os anos somaram-se e de repente dei por mim a entrar na puberdade com um corpo em crescente transformação. Da menina, do ser andrógino, fiz-me uma jovem mulher, bonita e de formas femininas bem evidenciadas, demasiadamente visíveis para uma criança ainda insegura para crescer.

Do galanteio masculino, excessivo na altura para uma rapariga sensível e sem saber como lidar com a sua sexualidade emergente, veio o medo do não conseguir lidar com toda aquela atenção. Da crítica pejorativa constante por parte da minha família pelo meu corpo demasiadamente evidente, escabrosamente sensual para personalidades tão conservadoras, veio a culpa, a vergonha e por fim também o medo.

Recordo bem o dia em que a penumbra do peso se abateu sobre mim. Tinha 13 anos. Naquele dia decidi ser intocável,  perfeita, invisível. Naquele dia renunciei à alegria de viver e decidi ser fiel à constante censura familiar. Passei a viver por obrigação. Rejeitei o meu corpo, a minha personalidade, o ser eu. Iniciei uma dieta rigorosa e um programa de exercício físico e de estudos implacável, sem margens para erro. A pouco e pouco fui-me afastando dos amigos, que entretanto evoluíam numa outra direção, tão distinta da minha. Comecei a perder peso e depressa me tornei numa das melhores alunas da escola. A sensação de vitória e controlo sobre a fome, o peso e os estudos depressa se transformou em obsessão. A privação de tudo levou-me ao abismo. Odiava o meu corpo, autoflagelava-me frequentemente, sentia-me gorda porque era ainda visível. E apesar de invulgar numa anoréctica, nunca vomitei. Sempre quis guardar tudo cá dentro.

Fui internada com 32 Kg quando o caso já havia tomado proporções de vida ou morte. Fui forçada ao internamento. E neguei o facto de estar doente e de precisar de ajuda até ao fim. Mesmo apesar da extrema fragilidade física que me levou inclusive a regressar à fase em que tinha que dormir junto da minha mãe.

Embora essencial, o internamento foi o mais traumático dos eventos da minha vida. Odiei. E depressa ganhei o peso necessário à sobrevivência porque entendi que, morta ou viva, não conseguiria existir sem a minha liberdade. Daqueles anos sobram-me as memórias enevoadas de um esqueleto ambulante a rastejar em frente, em direção ao incerto, com a crença de que tudo passa porque tudo o que tem início irá também ter um fim.

Iniciei aos 14 anos consultas regulares de psiquiatria que me acompanharam até aos 17. E muito embora reconheça o seu valioso apoio na altura, sei hoje que a mente é uma ferramenta essencial mas apenas enquanto meio e nunca como fim em si mesma.

Prossegui insatisfeita e sempre negligente com o meu corpo. O medo de vir a não poder ter filhos pela ausência de menstruação aos 18, conduziu-me ao peso necessário para o início do direito de existir dos meus ovários. Emocionalmente, permaneci à deriva e fechada, preparando o solo para o dia em que me distraí e deixei entrar a semente que veio para sempre alterar o rumo do meu destino. Nesta vida existem pessoas especiais, com o dom de tocar profundamente na ferida pelo simples facto de existirem. Assim entendi que estava viva e que não poderia continuar, não sem ter que olhar verdadeiramente para mim mesma primeiro.

Perdi-me novamente, até o dia em que decidi retomar a terapia e o acaso me levou até uma consulta de biossíntese, com a qual ganhei ferramentas de consciência corporal no mundo que me rodeia. Entendi
por exemplo que na altura era incapaz de olhar os olhos de outro ser humano.

Mais tarde conheci a Mariana e o que era suposto ser uma terapia regressiva, transformou-se no início de uma relação compassiva para comigo mesma e para com o meu corpo. Na sua iluminada presença,
entendi finalmente que existe uma outra dimensão de poder estar e ser. E o que inicialmente começou por ser um processo individual, depressa tomou forma e veio a solidificar-se num grupo terapêutico para mulheres, hoje minhas amigas, minhas irmãs e com as quais reaprendi a confiar no mundo, na vida, nos outros e entendi que com amor, paciência e compreensão tudo é possível.

Hoje sou uma pessoa diferente, novamente cheia de esperança. A par da terapia de grupo com a Mariana, tenho vindo a integrar a  meditação na minha vida, aquele essencial espaço de manobra mental e emocional para lidar com os desafios do dia-a-dia. E, finalmente, posso dizer que iniciei o regresso à casa que é o meu corpo. Hoje olho para trás e para a frente e sorrio. Sobretudo porque já não estou no passado nem no futuro mas mais algures no presente. E agradeço tudo, a todas e a todos,  do fundo do meu coração. (Experiência partilhada pela Inês Gonçalves, participante do grupo arteterapêutico feminino. Muito grata pela tua partilha Inês!)
 

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