DEPOIS DO FIM DO MUNDO

 

Foto: [Revista] Depois do fim do mundo - Desde a “Bíblia” e as mitologias antigas, a humanidade produz obras literárias que especulam sobre sua própria extinção. Para os maias, o apocalipse ocorrerá este mês http://abr.io/8xJb

Depois do fim do mundo

Desde a “Bíblia” e as mitologias antigas, a humanidade produz obras literárias que especulam sobre sua própria extinção. Para os maias, o apocalipse ocorrerá este mês
por Bia Abramo
O fim está próximo
O calendário maia, como sabemos, prevê que o apocalipse ocorrerá ainda este mês. Se a criação do mundo é um mistério científico, teológico e filosófico, sua finitude é certa. Nem que seja por uma razão banal, banalíssima: todo ser humano volta para o pó e, portanto, o mundo acaba para alguém todos os dias. Ou por uma questão de lógica: aquilo que começa cedo ou tarde termina.
O espírito humano, que, em seu melhor, é inventivo, teimoso e inquiridor, não se conforma muito com a ideia de que haverá um ponto final na aventura dos homens sobre a Terra. Volta e meia, põe-se a perguntar: como vai acabar? Quando mesmo? É para todo mundo ou só para alguns? Quem virá depois?
Fundadoras do pensamento ocidental, a mitologia grega e a religião judaico-cristã trataram desses temas. Ainda que os gregos estivessem mais preocupados com a diversidade da vida e a beleza da Hélade, como a Grécia era conhecida, os deuses do Olimpo tornam-se soberanos da criação depois de promover seu Armagedon particular, eliminando os titãs. Não faltava destruição na mitologia grega: cidades eram arrasadas por guerra, fome, pragas e monstros, muitos e variados monstros. Homens, heróis e semideuses que desafiavam os deuses eram objeto das punições mais cruéis e/ou bizarras. Mas, uma vez estabelecida a superioridade da cultura e do povo grego sobre os escravos, a vida na terra era uma festa idílica e sexy.
Com o catolicismo, a barganha ficou mais pesada. Fogo, sangue, peste e loucura: desde o Apocalipse de João de Patmos, o mundo, tal como o homem medieval conhecia, só podia acabar em hecatombe. A resposta a toda iniquidade humana, estabelecida desde o advento do pecado original e da consequente queda do Jardim das Delícias, teria uma punição à altura. O terrível cenário do Juízo Final teria diabos de chifre e rabo espetando os maus e cavaleiros acabando com a desgraçada da vida na Terra. O curioso é que, depois da aniquilação, seria estabelecido o novo Éden – para os justos, claro. Para os pecadores, danação eterna, mas que, de resto, não seria diferente daquela já bem testada no inferno ordinário ao qual estavam condenados todos os não-católicos.
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Dogmas Solapados
Os séculos das luzes foram solapando, aos poucos, os dogmas da criação divina, substituindo-os pelo racionalismo científico e, portanto, desviando a imaginação dos mistérios mais insondáveis do início e do fim do mundo. Paralelamente a isso, os aglomerados humanos, cada vez mais urbanos, anônimos e desencantados, davam lugar às narrativas de crimes e outros delitos morais, praticadospor humanos – ou monstruosidades assemelhadas aos humanos.
A aceleração do progresso técnico da virada do século 19 para o 20 deu lugar a um novo tipo de especulação criativa: se já estamos desfrutando de maravilhas no presente, que tipo de milagres ou terrores nos reservará o futuro? Para a narrativa literária, essa indagação recuperou a noção de utopia e de seu oposto, a distopia, além de criar um subgênero de aventura, a ficção científica.
Quando sobreveio o horror tecnológico das duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), com várias modalidades de mortandade em massa culminando nas bombas atômicas despejadas em Hiroshima e Nagasaki, no Japão, a imaginação distópica se encontrou com a possibilidade real: sim, na era atômica, não eram mais necessários monstros, demônios ou cataclismos naturais. Tornava-se possível promover a destruição da vida na Terra com um simples apertar de botão.
Com as políticas internacionais que brecaram a escalada armamentista de norte-americanos e soviéticos, pondo fim à Guerra Fria nos anos 80, a Terceira Guerra Mundial deixou de ser um pesadelo cotidiano. A antecipação apocalíptica, no entanto, não nos abandonou jamais. De lá para cá, outros motivos se somaram a esse imaginário: catástrofe ecológica, pandemias e até pesadelos criados pela engenharia genética podem nos varrer do sistema solar.
E, sim, quase todo futuro pós-catástrofe faz a humanidade recuar social, tecnológica e moralmente, num cenário natural devastado, em que faltam os recursos básicos de sobrevivência – água escassa, atmosfera contaminada, chuva ácida, continentes submersos ou desertos calcinantes, que convivem com os escombros da civilização dizimada.
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Repertório de Apocalipses
Ainda que o cinema tenha sido, nas últimas décadas, o depositário mais óbvio das histórias de fim do mundo, sobretudo depois que os efeitos especiais e a computação gráfica tomaram o poder, a literatura tem lá seu repertório de boas histórias pós-apocalípticas. A lista pode se iniciar com dois clássicos do escritor britânico H. G. Wells, A Máquina do Tempo e A Guerra dos Mundos. No primeiro romance, de 1895, um viajante ao ano 802.701 encontra a Terra entregue a duas espécies distintas, uma vagamente humanoide e boa, mas que é destruída pela outra. O segundo, publicado em 1898, inaugura a longa tradição da invasão alienígena como a causa da catástrofe.
Em A Praga Escarlate, de Jack London, escrito em 1912, um grupo de jovens à deriva numa São Francisco desértica e primitiva de 2072 encontra-se com um velho, que narra as sucessivas epidemias que deixaram poucos e miseráveis sobreviventes – uma delas, a Pantoplástica, teria se originado, veja bem, aqui, no Brasil.
Talvez o conjunto mais notável e inspirador de histórias em torno do final do mundo seja As Crônicas Marcianas, de Ray Bradbury. Escritos ao longo dos anos 50 para revistas baratas de ficção científica, as pulp magazines, os 28 contos foram, posteriormente, reunidos em livro pelo próprio Bradbury, que redigiu pequenos textos de “costura” entre eles. As crônicas compõem a saga da colonização de Marte pelos humanos, depois do então inevitável desfecho nuclear.
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Ficção Conservadora
Muito curiosamente, a ficção científica dos anos 60 tinha um traço conservador inequívoco. Um dos clássicos do gênero, Um Cântico para Leibowitz, do norte-americano Walter Miller, avança na tecnologia, mas atrasa muitos séculos na história: o preço pela humanidade ter se destruído é a volta da Igreja Católica ao centro do poder, numa sociedade ultra-hierarquizada. Outro autor norte-americano consagrado, Robert Heinlein, por sua vez, acredita na permanência da família como célula máter da nova sociedade depois do holocausto nuclear em O Mundo que Nos Espera. E isso tudo com um serviçal negro! Como contraponto a essa ficção científica passadista e reacionária, o norte-americano Kurt Vonnegut criou, em Cama-de-Gato, de 1963, uma ficção catastrófica nonsense e cheia de humor, em que seres de água chegam à extinção mudando de estado físico.
Lançado em inglês em 2006 e traduzido para o português no ano seguinte, o livro A Estrada, do norte-americano Cormac McCarthy, conta a história de pai e filho vagando pelos Estados Unidos. Sua escrita econômica e seca percorre o espaço do país, desesperadamente desértico e tenebroso. Mas talvez seja em Ensaio sobre a Cegueira (1995), do escritor português José Saramago, que o imaginário da catástrofe atinja seu ponto mais refinado. No romance, adaptado para o cinema pelo diretor paulistano Fernando Meirelles, quando uma cidade inteira se priva da visão por um fenômeno sem explicação, suspendem-se as noções de civilidade. É preciso, então, reconstruir de forma miúda e cotidiana a humanidade do lugar.
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Texto:Bia Abramo
Fonte:http://bravonline.abril.com.br/materia/depois-do-fim-do-mundo

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