INICIANDO A PRÁTICA ZEN

Iniciando a prática zen

Minha cadela não se preocupa com o significado da vida. Ela pode se preocupar em receber ou não a refeição pela manhã, mas não se senta preocupada em conseguir ou não a realização, a libertação, a iluminação. Desde que receba um pouco de comida e afeto, a vida lhe corre bem. Porém nós, seres humanos, não somos como os cães. Temos mentes centradas em si mesmas que nos remetem a muitos problemas. Se não entendermos o equívoco em nossa forma de pensar, nossa autopercepção, que é nossa maior bênção, torna-se também nossa perdição.
Todos nós acreditamos que, em certa medida, a vida é difícil, intrigante e opressiva. Mesmo quando tudo corre bem, como acontece por certo tempo, preocupamo-nos que ela não se mantenha assim. Dependendo de nossa história pessoal, chegamos à idade adulta tendo muitos sentimentos desencontrados a respeito da vida. Se eu lhes dissesse que sua vida já é perfeita, completa e inteira exatamente do jeito que está, vocês pensariam que estou maluca. Ninguém acredita que sua vida é perfeita. No entanto, existe no íntimo de cada um uma dimensão que sabe que somos ilimitados, infinitos.
Vemo-nos presos à contradição de encontrar a vida em meio a um quebra-cabeça muito desconcertante, capaz de nos causar muitos sofrimentos; ao mesmo tempo, temos uma vaga consciência da natureza ilimitada, infinita da vida. Desta maneira, começamos a procurar uma resposta a esse enigma.
A primeira forma de procurar é buscar soluções fora de nós mesmos. No começo, pode acontecer num nível bastante comum. Existem muitas pessoas no mundo que acreditam que se tivessem um carro maior, uma casa mais bonita, férias melhores, um patrão mais compreensivo, ou um parceiro mais interessante, suas vidas seriam muito melhores. Não há quem não pense assim. Lentamente, vamos descartando os "se ao menos", essas coisas que nos fariam viver melhor. "Se ao menos eu tivesse isto, isso ou aquilo, então minha vida seria outra". Na prática, todos estão com alguns desses "se ao menos", na cabeça em algum momento, contudo aos poucos essas idéias vão se desgastando. Primeiro, as mais grosseiras. Depois nossa busca dirige-se a níveis mais sutis. Por fim, na procura pelo elemento externo a nós mesmos que, em nossa expectativa, irá nos completar, voltamo-nos para uma disciplina espiritual. Infelizmente, nossa tendência é considerar com a perspectiva anterior essa nova possibilidade. Muitas das pessoas que buscam o Zen Center não crêem que a resposta esteja num Cadillac mais novo, mas em alcançar a iluminação. Conseguiram um novo recurso, um novo se ao menos." "Se ao menos eu tivesse condição de entender do que se trata a compreensão, seria feliz". "Se ao menos eu tivesse uma pequena experiência de iluminação, seria feliz." Ao iniciarmos uma prática como o zen, trazemos nossas noções habituais de estar chegando em algum lugar, de alcançar alguma coisa — no caso, a iluminação podendo a partir de então comer todos os docinhos que antes nos tinham sido proibidos.
Toda a nossa vida consiste neste pequeno indivíduo, olhando à sua volta em busca de objetos. No entanto, se você olha algo que é limitado — como o são o corpo e a mente — e procura alguma coisa fora de si, esta coisa torna-se um objeto e também deve ser limitado. Assim, existe alguma coisa limitada procurando algo limitado e, no final, só fica maior aquela velha loucura que o vem tornando uma pessoa tão infeliz.
Todos passam anos a fio consolidando uma visão condicionada da vida. Existe o "eu" e existe essa "coisa" aí adiante que ou me fere ou me agrada. Nossa tendência é levar a vida de modo a tentar evitar tudo o que nos magoe ou nos desagrade, reparando nos objetos, nas pessoas ou situações que, a nosso ver, parecem nos proporcionar dor ou prazer; evitaremos uns e perseguiremos outros. Sem exceção, todos nós fazemos isso. Mantemo-nos distantes de nossa vida, olhando-a, analisando-a, julgando-a, buscando respostas para perguntas como "O que ganho com isso? Vou ter prazer ou conforto, ou será preciso que eu fuja?". Fazemos esse questionamento de manhã à noite. Por trás de nossas fachadas agradáveis e amistosas ferve um constrangimento considerável. Se eu pudesse raspar o verniz e ir um pouco mais fundo do que a superfície de qualquer pessoa, encontraria medo, dor e uma ansiedade desvairada. Todos temos métodos para encobrir tais sentimentos. Comemos demais, bebemos demais, trabalhamos demais; assistimos à televisão demais. Estamos sempre fazendo algo para encobrir nossa ansiedade existencial básica. Algumas pessoas vivem dessa forma até o final de seus dias. Essa situação piora conforme o tempo vai passando. O que talvez não seja tão ruim quando você tem 25 anos parecerá terrível quando chegar aos cinqüenta. Todos conhecemos aquelas pessoas que já morreram e se esqueceram de deitar-se; elas têm uma mentalidade tão contraída em seus pontos de vista limitados, que a convivência é muito penosa tanto para quem está à sua volta como para elas mesmas. A flexibilidade, a alegria e o fluir da vida já se foram. Essa possibilidade tão sombria ameaça a todos nós a menos que acordemos para o fato de ser necessário trabalhar nossa própria vida, praticar.
É preciso que enxerguemos a miragem de que existe um "eu" destacado de um "aquilo". Nossa prática consiste em anular essa distância. Apenas no momento em que nós e os objetos nos tornarmos um, é que poderemos enxergar o que é nossa vida.
A iluminação não é algo que se atinge. É a ausência de alguma coisa. A vida inteira, a pessoa vai atrás de algo, perseguindo suas metas. A iluminação está em deixar tudo isso de lado. Entretanto, falar sobre ela não adianta muito. A prática precisa ser executada por cada um. Não há o que a substitua. Podemos ler a seu respeito durante mil anos e não adiantará de nada para nós. É preciso que todos nós pratiquemos, e temos de fazer com todo nosso empenho pelo resto da vida.
O que de fato queremos é uma vida natural. Nossas vidas são tão artificiais que realizar uma prática como a do zen, no começo, é bastante difícil. Porém, assim que começarmos a vislumbrar que o problema da vida não é algo externo a nós, teremos começado a percorrer o caminho. Quando o despertar se inicia, quando começamos a perceber que a vida pode ser mais aberta e alegre do que até então pensáramos ser possível, queremos praticar.
Entramos numa disciplina como a prática zen para podermos aprender a viver de modo lúcido, O zen tem quase mil anos e seus defeitos já foram corrigidos; embora não seja fácil, não é insano. É sensato e muito prático. Diz respeito à vida cotidiana. Refere-se a trabalhar melhor no escritório, a criar melhor as crianças, e estabelecer relacionamentos melhores. Levar uma vida mais lúcida e satisfatória deve decorrer de uma prática equilibrada e lúcida. O que desejamos fazer é encontrar uma maneira de trabalhar com a insanidade elementar que existe em função de nossa cegueira.
É preciso coragem para se sentar bem, O zen não é uma disciplina para todos. Precisamos estar dispostos a fazer algo que não é fácil. Se o fizermos com paciência e perseverança, com a orientação de um bom instrutor, então, aos poucos, nossa vida irá se aquietar, ficar mais equilibrada. Nossas emoções não serão mais tão dominadoras. Enquanto sentamos, descobrimos que a primeira coisa, a mais elementar, para trabalhar, é nossa mente caótica, ocupada. Estamos todos enredados num pensar frenético e o problema da prática está em começar a trazer esse pensamento para a claridade e o equilíbrio. Quando a mente fica limpa, clara, equilibrada, e não mais prisioneira dos objetos, então poderá haver uma abertura e, por um instante, nos daremos conta de quem somos, na verdade.
Contudo, sentar não é algo que praticamos durante um ou dois anos com a idéia de dominar a questão. Sentar é algo que praticamos a vida inteira. Não há limites para a abertura possível ao ser humano. Eventualmente percebemos que somos a base ilimitada e incontida do universo. Para o resto da vida, nossa incumbência será abrirmo-nos cada vez mais a essa imensidão e expressá-la. Quanto maior for nosso contato com essa realidade, mais aumentará nossa, compaixão pelos outros, maiores serão as alterações em nossa vida cotidiana. Viveremos, trabalharemos e nos relacionaremos de modo diferente com as pessoas. O zen é um estudo para a vida toda. Não é só sentar-se numa almofada durante trinta ou quarenta minutos diários. Toda nossa vida torna-se uma prática, vinte e quatro horas por dia.

Texto de Charlotte Joko Beck,
extraído do livro"
Sempre Zen"
http://www.nossacasa.net/shunya/default.asp?menu=25


A Prática do Zen...


O que é a prática Zen?
A prática é muito simples. Isso, entretanto, não significa que não irá transformar por completo nossa vida. Quero rever o que fazemos quando sentamos, ou praticamos o zazen. Se acreditarem que já estão além disso, bem, podem pensar que estão além.

Sentar é essencialmente um espaço simplificado. Nossa vida diária está em constante movimento: acontecem muitas coisas, muitas pessoas falam, muitos acontecimentos ocorrem. Em meio a tudo isso, é muito difícil sentir o que somos em nossa vida. Quando simplificamos a situação, quando deixamos os elementos externos de lado e nos retiramos do alcance do toque do telefone, da televisão, das pessoas que nos visitam, do cachorro que precisa passear, temos uma chance - que é, exatamente, a coisa mais valiosa que existe - de ficar de frente para nós mesmos.

A meditação não está relacionada com algum estado e, sim, com seu praticante. Não diz respeito a alguma atividade, ou a consertar ou a conseguir algo. Refere-se a nós. Se não simplificamos a situação, a oportunidade de dar uma boa olhada em nós mesmos fica muito reduzida, porque aquilo que nos propomos a ver não somos nós e, sim, tudo o mais. Se algo dá errado, para o que olhamos? Olhamos para o que saiu errado e, em geral, para aqueles que a nosso ver foram os responsáveis. Ficamos o tempo todo olhando para fora, e não para nós.

Quando menciono que a meditação diz respeito a quem a pratica, não pretendo que nos comprometamos numa auto-análise. Não é isso também. Então fazemos o quê?

Depois de termos assumido nossa melhor postura (que deveria ser equilibrada, fácil), ficamos apenas sentados ali, praticamos zazen. O que significa 'apenas sentados ali"? Essa é a mais exigente de todas as atividades. Por via de regra, na meditação, não fechamos os olhos. Neste momento, porém, gostaria que fechassem os olhos e ficassem apenas sentados. O que está acontecendo? Toda espécie de coisas. Uma fisgada mínima no ombro esquerdo; uma pressão no lado...

Percebam o rosto por um momento. Sintam-no. Estará tenso em algum lugar? Em torno da boca, na testa? Vamos descer um pouco mais. Observem o pescoço, somente sintam-no. Agora, os ombros, as costas, o peito, a região abdominal, os braços, as coxas. Continuem sentindo tudo que encontrarem. Agora sintam a respiração entrando e saindo. Não tentem controlá-la, apenas senti-la. Nossa primeira reação é tentar segurar a respiração. Deixe que aconteça naturalmente. No alto do peito, no meio, na barriga, pode parecer tensa. Apenas sinta como está. Sintam tudo isso. Se um carro passa lá fora, ouçam-no. Se um avião passar, observem-no. Talvez ouçam o barulho cíclico do motor da geladeira. Que seja! E o que vocês têm de fazer, positivamente é tudo o que vocês têm de fazer: experimentar isso e apenas ficar com essa experiência. Agora podem abrir os olhos.

Se conseguirem ficar fazendo isso durante três- minutos, é um milagre. O normal é que, decorrido um minuto, começamos a pensar. Nosso interesse em apenas acompanhar a realidade (que é o que acabamos de fazer) é muito reduzido. 'Você quer dizer que zazen é só isso?" Não gostamos dele. "Estamos em busca da iluminação, não?" Nosso interesse pela realidade é extremamente pequeno. Não queremos pensar. Queremos nos afligir com todas as nossas preocupações. Queremos entender qual é o sentido da vida. Assim, antes de nos darmos conta, teremos esquecido por completo deste momento e teremos divagado em pensamentos sobre as coisas: o namorado, a namorada, o filho, o patrão, o medo permanente... e por aí afora! Nada há de vergonhoso nesse fantasiar, exceto que, quando estamos imersos nele, perdemos alguma outra coisa. Quando estamos perdidos em nossos pensamentos, quando estamos sonhando, o que perdemos? A realidade. Nossa vida nos escapou.

Isso é o que os seres humanos fazem. Não fazemos isso só uma parte do tempo: fazemos a maior parte do tempo. Por quê? Claro que vocês sabem a resposta. Fazemos porque estamos tentando nos proteger. Estamos tentando nos livrar de nossas dificuldades atuais, ou pelo menos entendê-las. Não há nada de errado em nossos pensamentos autocentrados, exceto que, quando nos identificamos com eles, nossa visão da realidade fica bloqueada. Assim, o que deveríamos fazer quando os pensamentos aparecem? Deveríamos rotulá-los. Coloquem rótulos específicos: não só "pensamento, pensamento" ou "preocupação, preocupação", mas um rótulo específico. Por exemplo: "Estou pensando que ela é muito mandona"; "Estou pensando que ele é muito injusto comigo"; "Estou pensando que nunca faço as coisas certas". Sejam específicos. Se os pensamentos estiverem vindo em avalanche, numa velocidade tão grande que vocês não sintam mais nada senão confusão, então simplesmente rotulem essa confusão nebulosa de "confusão". Mas se insistirem em localizar pensamentos isolados, cedo ou tarde, eles virão.

Quando praticamos dessa maneira, passamos a nos conhecer, a saber como nossa vida funciona, o que estamos fazendo com ela. Se percebemos que determinados pensamentos reaparecem centenas de vezes, ficamos sabendo a nosso respeito algo que antes desconhecíamos. Talvez nosso pensamento incessante refira-se ao passado ou ao futuro. Algumas pessoas estão sempre pensando sobre acontecimentos, enquanto outras pensam em pessoas. Há quem pense sempre a respeito de si mesmo. Em algumas, os pensamentos são quase só julgamentos a respeito dos outros. Enquanto não os rotularmos durante quatro ou cinco anos, não nos conheceremos bem. Quando damos rótulos precisos e meticulosos a nossos pensamentos, o que acontece com eles? Eles começam a aquietar-se. Não é preciso que nos obriguemos a livrar-nos deles. Quando eles se acalmam, podemos retornar à experiência do corpo e da respiração, muitas vezes seguidas. Não há como deixar de enfatizar que não fazemos isso apenas duas ou três vezes; fazemos dez mil vezes. Com isso, nossa vida se transforma. Essa é uma descrição teórica do sentar. E muito simples. Não há nada de complicado nela.

Consideramos agora uma situação da vida cotidiana. Suponhamos que você trabalha numa companhia de aviação, e lhe contam que o contrato com o governo está terminando e é provável que não seja renovado. Você pensa com seus botões: "Vou perder meu emprego. Vou ficar sem rendimentos e tenho uma família para sustentar. E terrível!". O que acontece então? Sua mente começa a remoer o problema sem parar. "O que acontecerá? O que faço?" A mente começa a ficar cada vez mais rápida com a preocupação.

Claro que não há nada de errado em planejar com antecedência. Temos de planejar. Porém, quando ficamos aborrecidos, não é porque apenas planejamos, mas porque ficamos obcecados. Viramos a situação do avesso de todos os jeitos. Se não soubermos o que significa fazer uma prática com nossos pensamentos de preocupação, o que ocorre em seguida? Os pensamentos produzem uma emoção e ficamos mais agitados ainda. Toda agitação emocional é causada pela mente. Se permitirmos que isso aconteça durante um certo tempo, acabaremos em muitos casos ficando doentes ou mentalmente deprimidos- Se a mente não se incumbir da situação com discernimento, o corpo o fará. Ele nos ajudará a sair dessa. E como se dissesse: "Se você não tomar conta da situação, creio que eu terei de fazê-lo". Assim, produzimos nosso próximo resfriado, nossa alergia seguinte, nossa próxima úlcera, seja qual for nosso estilo. A mente que não está consciente de si produzirá enfermidades. Isto não é uma crítica, porém, não conheço quem nunca adoeça, inclusive eu. Quando o desejo de nos preocupar é forte, criamos dificuldades. Com uma prática regular, apenas o fazemos menos. Tudo aquilo de que não formos conscientes frutificará em nossa vida, de um jeito ou de outro.

Do ponto de vista humano, as coisas que dão errado em nossa vida são de dois tipos. Um são os fatos que acontecem fora de nós e o outro são os que acontecem dentro, como as doenças físicas. Ambas são a nossa pratica e trabalhamos com elas do mesmo modo. Rotulamos todos os pensamentos que acontecem à volta deles e os vivenciamos em nosso corpo. O processo é o próprio pensar.

Falar a esse respeito parece, de fato, fácil. Entretanto, fazê-lo é terrivelmente difícil. Não conheço ninguém que possa fazê-lo o tempo todo. Conheço algumas pessoas que conseguem uma boa parte do tempo. Mas, quando praticamos desta forma, tomando consciência de tudo que entra em nossa vida (interna e externa), ela começa a transformar-se. Aumentamos nossa força e nosso discernimento; às vezes, conseguimos inclusive viver num estado de iluminação, que só significa experimentar a vida como ela é. Não é nenhum mistério.

Se você é novato na prática, é importante saber que ficar apenas sentado na almofada durante quinze minutos já é uma vitória. E ótimo ficar sentado com essa compostura, somente ficar ali.

Se tivéssemos medo de ficar na água e não soubéssemos nadar, a primeira vitória seria apenas mergulhar. O próximo passo poderia ser molhar o rosto. Se fôssemos ótimos nadadores, o desafio poderia ser conseguir bater a mão na água numa determinada inclinação, a cada braçada. Isso significa que um é melhor do que o outro? Não. Ambos são perfeitos, cada qual em sua etapa do caminho. A prática, em qualquer estágio, é simplesmente ser quem somos a cada momento. Não é uma questão de sermos bons ou maus, melhores ou piores. As vezes, depois das palestras, as pessoas comentam: "Não entendi isso". Isso também está perfeito. Nosso entendimento aumenta com o tempo, contudo, a qualquer momento, somos perfeitos em ser do jeito que somos.

Começamos a aprender que só existe uma coisa na vida em que podemos confiar. Qual é? Podemos dizer: "Confio em meu companheiro". Podemos amar nosso marido, nossa esposa; mas não podemos nunca confiar cegamente neles porque uma outra pessoa (assim como nós) é sempre não confiável até certo ponto. Não há uma pessoa na face da Terra em quem possamos confiar por completo, embora, sem dúvida, possamos amá-la e desfrutar sua companhia. Em que, então, podemos confiar? Se não é em uma pessoa, em quê? Em que podemos confiar na vida?, perguntei a alguém que me respondeu: "Em mim". Você pode confiar em si mesmo? A autoconfiança é uma boa coisa, porém é inevitavelmente limitada.

Existe uma coisa na vida em que sempre podemos confiar: na vida tal como é. Vamos falar em termos mais concretos. Imagine que existe uma coisa que eu quero muito: talvez casar com uma certa pessoa, ou fazer um curso de especialização, ou ter um filho saudável e feliz. No entanto, a vida como é poderia ser exatamente o inverso do que eu desejo. Não sabemos se iremos ou não casar com aquele alguém. Quem sabe, se casarmos, aquela pessoa ideal morra amanhã. Pode ser que consigamos ser especialistas ou não. É provável que sim, mas não podemos contar com isso. Não podemos contar com coisa alguma. A vida será sempre do jeito que é. Então, por que não conseguimos confiar nesse fato? O que é tão difícil a esse respeito? Por que estamos sempre incomodados? Suponha que sua casa tenha acabado de ser destruída por um terremoto e você está quase perdendo um braço e todas as suas economias. Será que dá para confiar na vida tal qual ela se apresenta? Você consegue ser assim?

Confiar que as coisas são como são é o segredo da vida. Porém, não queremos saber de nada disso. Posso confiar absolutamente que, no ano que vem, minha vida mudará, estará diferente, e, no entanto, será sempre do que jeito que é. Se eu tiver um ataque cardíaco amanhã, posso confiar que, porque eu o tive, eu o tenho. Posso me apoiar na vida como ela é.

Quando fazemos um investimento pessoal em nossos pensamentos, criamos o "eu" (como diria Krishnamurti), então nossa vida começa a não funcionar. Eis por que rotulamos os pensamentos, desfazendo o investimento. Depois de termos ficado sentados por tempo suficiente, podemos notar nossos pensamentos apenas como input sensorial. Podemos nos ver atravessando os estágios preliminares a este: primeiro sentimos que nossos pensamentos são reais, e a partir deles criamos as emoções autocentradas e, a partir destas, os obstáculos que nos impedem de ver a vida como ela é, porque, se estamos contidos pelas emoções autocentradas, não conseguimos enxergar as pessoas e as situações com clareza. Um pensamento em si é só input sensorial, um fragmento de energia. Entretanto, tememos ver os pensamentos tais como são.

Quando rotulamos o pensamento, retrocedemos e nos desapegamos da identificação. Há uma enorme diferença entre dizer: "Ela é impossível" e "Estou pensando que ela é impossível". Se persistirmos na prática de rotular qualquer pensamento, o revestimento emocional começa a dissolver-se e ficamos, enfim, com o fragmento impessoal de energia, ao qual não precisamos ficar apegados. Se, porém, acreditamos que nossos pensamentos são reais, nossa conduta se fundamentará neles. Se agirmos a partir deles, nossa vida ficará uma confusão. Mais uma vez, a prática é o trabalho com este processo até que o tenhamos impregnado em nossos ossos. A prática não se refere a entender com a mente. Ela tem du ser nossa carne, nossos ossos, nós mesmos. Claro que temos de ter pensamentos orientados para a vida, como seguir uma receita, consertar um equipamento, planejar as férias. Mas não necessitamos dessa atividade emocionalmente autocentrada a que chamamos pensar. Não é de fato pensar; é uma aberração do pensar.

O zen refere-se a uma vida ativa, envolvida. Quando conhecemos bem nossas mentes e as emoções que nosso pensamento cria, temos a possibilidade de ver melhor o que é a nossa vida e o que precisa ser feito; em geral, é a próxima coisa que temos logo à frente. O zen tem que ver com uma vida de ações, não com um fazer nada passivo. No entanto, as ações têm de estar baseadas na realidade. Quando se baseiam em falsos sistemas de pensamento (fundamentados em nosso condicionamento), têm alicerces precários. Depois de enxergarmos com clareza os sistemas de pensamento, seremos capazes de ver o que precisa ser feito.

O que estamos fazendo não é nossa reprogramação; é nossa libertação de todos os programas, notando que são vazios, sem realidade. A reprogramação é só saltar de um caldeirão para outro. Pode ser que tenhamos aquilo que pensamos ser uma melhor programação; mas o propósito do sentar é não ser conduzido por nenhum programa. Imaginemos que há o programa chamado "Não tenho autoconfiança". Suponhamos que decidimos reprogramá-lo para "Tenho autoconfiança". Nenhum dos dois conseguirá se sair muito bem frente às pressões da vida, porque envolvem um "eu". Este "eu" é uma invenção muito frágil - aliás, irreal - e é com facilidade enganado. Na realidade, nunca houve um "eu". O que importa é enxergar que é vazio, uma ilusão, que é diferente de dissolvê-lo. Quando falo que é vazio, quero dizer que não tem uma realidade básica; ésó uma criação de pensamentos autocentrados.

Praticar o zen nunca é tão fácil quanto falar sobre ele. Até mesmo os estudantes que têm um certo entendimento do que estão fazendo, às vezes, costumam se afastar da prática básica. Apesar disso, quando sentamos bem, tudo o mais se incumbe de si mesmo. Por essa razão, se estamos praticando o sentar há cinco ou vinte anos, ou estamos apenas no começo, é importante sentar com um grande e meticuloso cuidado."

O que a prática do Zen não é?

Em primeiro lugar, ela não diz respeito a causar mudanças psicológicas. Se praticarmos com inteligência, a mudança psicológica será causada; não estou questionando isto que, aliás, é algo maravilhoso. Estou dizendo que a prática não é efetuada com o objetivo de originar tal alteração.

A prática não é para conhecer intelectualmente a natureza física da realidade, saber do que consiste o universo, ou como funciona. E, repetindo, numa prática séria, nossa tendência é ter algum conhecimento desses assuntos. Mas isso não é a prática.

A prática não é atingir algum estado de graça. Não é ter visões. Não é ver luzes brancas (ou róseas ou azuladas). Todas essas coisas podem ocorrer e, se sentarmos durante tempo suficiente, talvez elas aconteçam mesmo. Porém isto não é a prática.

A prática não é ter ou cultivar poderes especiais. Há muitos deles, e todos nós já os possuímos, naturalmente. Algumas pessoas os têm numa proporção extraordinária. No ZCLA (Zen Center de Los Angeles), às vezes, eu tinha a útil capacidade de ver aquilo que estava sendo servido como jantar a duas portas de distância. Se era alguma coisa que eu não apreciava, eu não ia. Essas aptidões são pequenas excentricidades e, novamente, não constituem a verdadeira prática.

A prática não implica poder pessoal ou jôriki, a força que é desenvolvida após anos de prática do sentar. Outra vez repito, o jõriki é uma decorrência natural do zazen. E, insisto, esse não é o caminho.

A prática não é para ter sentimentos agradáveis, felizes. Não é para se sentir bem, em vez de mal. Não é uma tentativa de ser ou de sentir qualquer coisa especial. O produto ou a finalidade da prática, ou aquilo a que ela se refere, não é ser/estar sempre calmo ou controlado. Mais uma vez, nossa tendência é nos tornarmos assim após muitos anos de prática, no entanto essa não é a questão.

A prática não se relaciona a algum estado corporal de saúde absoluta, de proteção total contra qualquer tipo de doença grave. Sentar costuma produzir resultados benéficos na saúde de muitas pessoas, embora durante a prática possam escoar meses ou mesmo anos de desastres com a saúde. Mais uma vez, a busca da saúde perfeita não é o caminho; embora, sem sombra de dúvida, com o tempo, haverá um efeito benéfico na saúde da maioria das pessoas. Não há qualquer garantia nesse sentido!

A prática não significa alcançar um estado de onisciência no qual a pessoa conhece tudo de tudo, estado em que a pessoa é uma autoridade a respeito de todo e qualquer problema secular. Pode até haver uma certa clareza relativa a respeito de algumas questões, mas as pessoas esclarecidas também são conhecidas por dizer e fazer tolices. Outra vez, a onisciência não é a questão.

A prática não quer dizer ser "espiritual", pelo menos não como esta palavra costuma ser entendida e empregada. Ela não é para ser coisa alguma. Portanto, a menos que tenhamos clara nossa não-intenção de ser "espirituais", essa meta pode tornar-se sedutora e prejudicial.

A prática não envolve salientar todas as espécies de "boas" qualidades e livrar-se das supostas "más". Ninguém é "bom" ou "mau". A luta para ser bom não é a prática. Esse tipo de treino é uma forma sutil de atletismo.

Poderíamos, de modo quase incessante, continuar relacionando aspectos do que a prática não é. Na realidade, qualquer um na prática pode estar mobilizado por uma ou outra dessas ilusões. Todos esperamos mudar, chegar a algum lugar! Essa é em si uma falácia básica. Porém, o mero contemplar desse desejo começa a esclarecê-lo e a prática essencial de nossa vida se altera conforme a executamos. Começamos a compreender que nosso desejo frenético de ser melhor, de "chegar a algum lugar", é a ilusão em si, a fonte de nosso sofrimento.

Se nosso barco cheio de esperanças, ilusões e ambições (de chegar a algum lugar, de tornar-se espiritual, de ser perfeito, de alcançar a iluminação) vira de ponta-cabeça, o que é este barco vazio? Quem somos nós? O que, em termos de nossas vidas, podemos perceber, conhecer?"


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