SOBRE MÁSCARAS,RÓTULOS E ESSÊNCIAS



“The absence of any fixed nature grants the freedom to become anything.” [a ausência de qualquer natureza fixa garante a liberdade de se tornar qualquer coisa]
“When I stop trying to become something, I discover that I am everything.” [quando eu paro de tentar me tornar algo, eu descubro que sou tudo]
David Loy
Este post é uma continuação do anterior, “Viver além de si mesmo“. Lembro que falei bastante sobre identidades em outro texto também: “Liberdade, profundidade e presença (para homens) – Parte 1“. O que me motivou a escrever as observações abaixo foram alguns comentários que recebi aqui e na Cabana. Eis alguns exemplos:
“É mesmo Gu, quando conhecemos alguém novo queremos logo colocar um rótulo, nem paramos para pensar que ali diante de nós está só um momento de alguém, que além dali prá muito além está sua essência que demoraremos muito a perceber, não será assim num instantâneo contato inicial. Quanto ao outro lado, o da nossa percepção. Acho que isso vem com a maturidade, com o auto conhecimento praticado constantemente. E mesmo assim sempre estamos corrrendo o risco de cometer ‘encenações’… acho que faz parte da máscara social que levamos cada vez que saímos à rua ao encontro dos outros que também levam as suas.”
“Achei interessantíssima a maneira que você tratou a habilidade que temos de encenações, encarar personagens, usar máscaras…”
“Quem nunca assumiu um personagem, seja para impressionar uma gostosa, seja para ser aceito em algum grupo? Já me fiz de intelectual pra conquistar garotas. Já me fiz de sensível. Hoje eu vejo como fui idiota. Mas também vejo o quanto aprendi com isso. Agora eu tento não represento mais o papel que impõem a mim. Só tento ser natural.”
“Achei muito bom o texto, porém nunca fui de querer ser algo, sempre demonstrei quem eu era mesmo. Com meus medos, anseios, manias…”
Para quem não tiver tempo de ler o post inteiro, resumo minha abordagem. Vou afirmar que a máscara existe quando uma identidade quer encenar, claro, mas que o movimento que analiso é anterior: o processo incessante de criação de identidades a partir de nossa base livre e o modo como sofremos na medida em que esquecemos da base e nos vinculamos apenas com as identidades. Sempre vamos atuar como identidades, mas podemos ser livres ou não. Esse é o ponto. É nesse sentido que digo que “não devemos acreditar em nós mesmos pois estamos sempre atuando”. As noções de máscara, rótulo e essência são completamente descartáveis. Ao fim, ofereço 4 imagens que considero liberadoras: o espaço, o céu, o espelho e a tela de cinema.

O modelo “Máscara x Essência”

Segundo essa perspectiva, somos alguém com certas características que mudam e com outras mais permanentes. Temos alguma “essência” que sobrevive às flutuações. Às vezes somos verdadeiros e às vezes fingimos; às vezes agimos de coração, às vezes vestimos máscaras. Ao olhar o outro, podemos ver a essência ou fixar rótulos.
Esse modelo condiciona todas as nossas ações e relacionamentos, da conquista à separação. Falei sobre seus equívocos e conflitos nesse post: “Analise-me, veja algo oculto e me leve para a cama”. Um dos paradoxos de nos olharmos sob a perspectiva de máscaras e essências é assim descrito (veja comentário acima): “Tento ser natural”. Ora, se estivéssemos no caminho certo, não haveria esforço ou tentativa para ser natural, não é mesmo?
Basta, porém, um exame mais radical de nosso ser para percebermos que nenhuma característica pode ser apontada como permanente. Em nosso corpo ou em nossa mente, nada é verdadeiramente estável. Ou seja, não temos essência alguma, como bem descreveram os existencialistas (leia Sartre ou Albert Camus). É verdade que algumas tendências persistem mais que outras, o que apenas reflete um processo de maior condicionamento e energia de hábito, como em alguém que fuma há 30 anos. Ele é fumante? Não, pois em algum momento da vida não fumava e, a qualquer momento, é livre para interromper seu vício.
David Loy, filósofo e praticante zen, se debruçou exaustivamente sobre essa questão. Ele afirma que todos nós temos alguma intuição de nossa falta de base, nossa ausência de chão (groundlessness). E que isso pode ser percebido pela constante sensação de achar que há algo de errado em nós, ou por imaginarmos estar fazendo algo de errado para sentirmos tamanha insatisfação ou tanto sofrimento.
Sem o contraste com uma suposta essência, não há como haver máscaras, pois não há ninguém para usá-las! Não há face alguma por trás. É por isso que, logo que incorporamos uma máscara, ela nos assume em nossa totalidade. Ela nós é. Uma identidade completa, não algo que esconde algo mais profundo em nós. Ela, em si, pode ser algo profundo também, algo que podemos demorar anos para explorar, em nós ou nos outros. Podemos passar anos nessa ilusão, até finalmente “conhecermos” o outro e logo em seguida nos frustrarmos: “Fiquei mais de uma década contigo e agora descubro que você nunca foi o que eu pensava ser”. Por ser liberdade e mobilidade, o outro sempre frustrará nossa busca por segurança e certeza. É o mesmo dilema dos cientistas que atuam sob a crença de uma realidade com leis pré-existentes. Depois de muito esforço investigativo, eles chegam à física clássica e logo se frustram com o universo: “Fiquei mais de um século contigo e agora descubro que você nunca foi o que eu pensava ser”. ;-)
É a partir dessa percepção – além de máscaras, rótulos e essências – que surgem os textos desse blog. Se eles forem lidos antes dessa constatação, perdem totalmente o sentido. O modelo “Máscara versus Essência” não se aplica a nada que escrevo aqui. É óbvio que meu objetivo não é falar “a verdade” (pois sou cético demais para acreditar nisso), mas simplesmente deixar claro o que estou comunicando, em uma conversa mesmo. Sem tal esclarecimento, a conversa vira uma sucessão de ruídos desconexos. Minha abertura exige comunicação. Eu quero compartilhar; eis o motivo desse post complementar.

Fonte: Gustavo Gitti- http://nao2nao1.com.br/

Heteronímia na Literatura: máscara e essência , escrever é preciso

Fernando Pessoa não foi apenas criador de obras literárias, mas também um criador de escritores. Em outras palavras, o seu projeto de arte era tão vasto e sua inteligência, imaginação e capacidade criadora tão amplas, que não lhe bastava criar uma única obra, mesmo que contivesse vários volumes e títulos. Por isso, por meio da imaginação, concebeu várias entidades poéticas, com biografia, traços físicos, profissão, ideologia e estilos próprios.

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