O QUE É SER BRASILEIRO ? Uma leitura da obra de Darcy Ribeiro


Samba, 1928-Obra de Di Cavalcanti


O que significa ser brasileiro e o que é o Brasil no mundo de hoje? Somos um povo ainda na busca de um destino e uma identidade? Essas são algumas perguntas muito bem questionadas e respondidas na obra prima de Darcy Ribeiro: “O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil”, livro editado pela Companhia das Letras em 1995 em São Paulo. Trata-se da última grande obra deste importante pensador brasileiro. Um trabalho extremamente maduro e realizado com confiança e determinação. Somos um povo que teve sempre suas aspirações jamais levadas em conta em nome dos interesses da prosperidade empresarial exportadora. Um povo que teve como base uma força de trabalho afundada no atraso e na pobreza. Nossos povos tribais sofreram um enorme genocídio e os negros escravos uma das piores condições de vida já existentes. No entanto, surpreendentemente, essa massa de negros, mulatos e caboclos criou a etnia brasileira, um dos povos mais criativos do mundo. Temos ao mesmo tempo ingredientes de anarquia, bondade e indisciplina com tirania e autoritarismo. Apesar de todas as fusões de matrizes somos um dos povos mais homogêneos lingüística e culturalmente da Terra. De acordo com Darcy Ribeiro, somos uma “nova Roma. Uma Roma tardia e tropical” e nosso destino é a unificação com as nações latino-americanas.
O autor afirma que o Brasil é resultado do entrechoque do invasor português com índios silvícolas e africanos altamente massacrados e escravizados. O resultado foi a criação de um povo novo: mestiçado e sincrético. O Brasil é também, segundo Darcy, novo também pela alegria, apesar de tanto sofrimento. Mas, de velho temos o sentido de servir aos interesses econômicos externos e a reprodução da miséria, pobreza e violência. Nossa singularidade está na absorção do negro e do indígena em todos os aspectos de nosso cotidiano. Além disso, recebemos ingredientes do árabe, japonês, alemão, italianos e muitos outros. Darcy divide o Brasil em macro-regiões sócio-culturais importantes: sertanejos (predominantes no Nordeste), caboclos (predominantes na Amazônia), crioulos (predominantes no litoral), caipiras (predominantes no Sudeste e Centro-Oeste), gaúchos (predominantes no Sul) e os imigrantes europeus e japoneses que predominam no Sul e em São Paulo. O livro trabalha detalhadamente as características de cada tipo e suas formas de integração. O autor ressalta alguns elementos importantes em nossa formação como os diversos processos violentos e de repressão presentes na história do Brasil. Destaca, entretanto, que tanto os índios como os negros sempre lutaram e resistiram contra o domínio e foram fortemente reprimidos.
Início - Os índios viviam na beira do mar e ao longo dos rios do interior e havia um processo de dominação e unificação por parte dos tupis. A chegada dos europeus mudou todo este processo. O europeu atacou em diversas frentes: bacteriológica (trazendo doenças mortais aos indígenas), ecológica (disputando o território), econômica (com a mercantilização e a escravização) e étnico-cultural (com a miscigenização). Quando os europeus chegaram, os tupis iniciavam uma revolução agrícola, dominando o cultivo da mandioca e aperfeiçoando os cultivos de milho, tabaco, batata-doce, cará, algodão, mate, guaraná e pequi. Nos rituais de antropofagia nunca comiam os covardes e sim os guerreiros.
Os lusitanos, por sua vez, eram urbanos e classistas e planificaram a invasão em conjunto com a Igreja Católica e em concorrência com a Espanha, Holanda e Inglaterra. Portugal entrou neste empreendimento porque havia atingido uma importante revolução mercantil e tecnológica marítima com o leme fixo, o uso da bússola, as velas, os canhões e a cartografia. A ocupação do Brasil foi uma iniciativa mercantil e missionária cristã. De acordo com Darcy Ribeiro, a primeira impressão que os índios tiveram dos portugueses foi de feios, fétidos e infectos. Depois do pau-brasil, o próprio índio foi a principal mercadoria levada para a Europa. Logo os índios perceberam o terror que representava a chegada do invasor e muitos optaram pelo suicídio. No entanto, criou-se logo um conflito entre os mercantilistas que só pensavam no lucro e os missionários que queriam “salvar” os índios da preguiça, do canibalismo, da feitiçaria e do sexo selvagem. O fato é que a expansão ibérica criou a primeira civilização internacional. O “cunhadismo” foi, segundo Darcy Ribeiro, uma tática importante para a ocupação do Brasil que consistia em fazer o máximo de filhos com as índias.
Índios e Afro-Brasileiros - Uma embarcação européia na época levava de volta para Europa toras de pau-brasil, índios, couro de animais e papagaios e trazia ferramentas de metal e gente para ocupar o território – praticamente só homens. Finalmente quando o governo geral se instalou na Bahia trouxeram construtores (na maioria mouros), barbeiros, serralheiros e cirurgiões. Os índios sempre se rebelavam e fugiam para o interior. O fato é que surgiu no Nordeste um povo mestiço de europeus e índios nunca visto antes e que marca o tipo nordestino até hoje. A expansão do domínio português para o interior do Brasil é obra dos que Darcy chama de “brasilíndios” e mamelucos. A adaptação da empresa portuguesa aos trópicos só foi possível graças aos índios que sabiam dominar a floresta.
Para aqui vieram principalmente negros da costa Ocidental da África que formam três grandes grupos: os Yorubás, os islamizados (do norte da Nigéria) e os Bantús (grupo congo-angolês). Foram logo obrigados a se adaptarem à cultura luso-tupi. A África Negra não tinha uma unidade lingüística o que dificultou muito aqui a formação de núcleos solidários dos escravos – falavam línguas diferentes. Eram supervigiados devido à tendência de fugirem e ao valor que tinham como mercadoria. Eram altamente capazes de realizar longas tarefas nos engenhos e depois nas minas. No período colonial, graças à mão-de-obra escrava, os portugueses conseguiram estabelecer a empresa mais próspera da época no valor de 2,5 milhões de Libras Esterlinas. Empreendimento muito cobiçado pelos holandeses e franceses que promoveram várias invasões. Em 1700 já tínhamos 150 mil negros no Brasil concentrados nos engenhos. Mas, 30 mil já se estabeleciam em quilombos, sendo o de Palmares o maior e mais poderoso. A descoberta do ouro provocou um enorme deslocamento de negros para Minas Gerais e para o Rio de Janeiro. O povo caipira que surgiu da miscigenização da região de São Paulo foi responsável por grande parte da ocupação do território que hoje forma o Brasil. Índios, negros, caipiras, sertanejos e outros tipos ganham capítulos específicos no livro de Darcy Ribeiro.
Guerras — O Brasil é um país marcado por conflitos violentos étnicos, sociais, econômicos e religiosos. Os índios tinham seus conflitos, mas jamais um grupo foi expansionista ou quis impor hegemonia. Exemplos típicos de conflitos altamente violentos são Palmares e Canudos, ambos repressivos contra tentativas de liberação e reforma territorial. Palmares foi a maior ameaça ao sistema colonial e já tinha, segundo o autor, propostas socialistas e por pouco não se tornou numa sublevação geral dos negros podendo criar uma nova nação. Canudos, por sua vez, foi um conflito classista entre proprietários de terra e trabalhadores que começavam a se organizar independentemente. Foi a primeira tentativa de reforma agrária. O autor descreve muito bem os conflitos e a violência características da formação do Brasil e ainda reproduzida nas grandes cidades e no meio rural.
Urbanização — De acordo com Darcy Ribeiro, o Brasil já surgiu como uma civilização urbana, comandada pelas cidades. No primeiro século da ocupação já surgiram a cidade da Bahia e a atual João Pessoa como núcleos urbanos significativos. No segundo século foram construídas São Luis, Cabo Frio, Belém e Olinda e no terceiro século São Paulo, Mariana e Ouro Preto no interior. No quinto século havia cidades por todo o território com funções comerciais, religiosas e de controle burocrático e de impostos. As principais edificações eram os fortes e as igrejas. Logo surgiu uma classe alta urbana composta por funcionários, militares, sacerdotes e negociantes. Abaixo desta classe vinham os mestiços artífices compostos por ferreiros, sapateiros e construtores. No entanto, só na região mineradora implantaram cidades completamente independentes de uma atividade agrícola exportadora. A exploração da borracha e do café também criou importantes núcleos urbanos. O grande salto urbano, entretanto, aconteceu nos anos 1950 com a industrialização e as cidades se tornaram em centros altamente problemáticos. Em 1850 a composição da população urbana brasileira era de 6 milhões de negros e 5 milhões de europeus.
Brasis - Os diversos povos e etnias que compõem o Brasil têm algo de semelhante destacado por Darcy Ribeiro nesta obra prima da antropologia e da cultura: “todos reivindicam a terra em que vivem e de que tiram sua subsistência. Mas todos demonstram que são perfeitamente capazes de, sobre essa mesma base, criar, senão a prosperidade, a fartura de uma vida social alegre e satisfatória” (p. 432). O colonialismo escravista criou uma cultura nova em que o senhor de engenho — proprietário e dominador — e o escravo negro foram obrigados a integrarem-se numa condição de vida nova em que o engenho funcionava como uma enorme fábrica. A grande falha desse sistema, de acordo com o autor, foi a incapacidade de interação e de criação de uma massa trabalhadora de consumo. A base é, infelizmente, uma sociedade patronal e patriarcal e os movimentos de independência e republicanos contemplavam o latifúndio e a escravidão. O lado forte de nossa formação é a enorme capacidade criativa do povo crioulo que influencia em tudo de nossas vidas e coloca a cultura brasileira no mundo. O sertanejo, por sua vez, também tem uma sociabilidade admirável presente nas festas populares e forma hoje uma importante massa de trabalhadores nos principais centros urbanos do país. Os caboclos especializados na floresta tropical são peça essencial para a sobrevivência da Amazônia e de possibilidades ecológicas interessantes para o mundo. No sul e em São Paulo gaúchos e imigrantes se integraram na unificação nacional também contribuindo com suas características sociais, intelectuais e culturais próprias e abrasileiradas. O caipira, por sua vez, foi essencial para a expansão do Brasil e em Minas Gerais criou a primeira sociedade burguesa e urbana brasileira. O livro de Darcy Ribeiro junto com “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre e “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque do Holanda formam as obras mais importantes no caminho de respondermos as perguntas: o que é ser brasileiro? Qual a posição do Brasil no mundo? Vamos terminar esta resenha com a esperançosa posição do mestre Darcy Ribeiro que conclui no livro: “estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra” (p. 449).
Autor:Francisco Pontes de Miranda Ferreira – jornalista

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