O EVANGELHO SEGUNDO LENNON E McCartney

“Moça, sei que já não és pura, teu passado é tão forte, pode até machucar...” (Wando) 

“Moça” foi uma das primeiras canções que aprendi a tocar no violão e fez um sucesso medonho nos anos 70 na voz melosa de Wando, o cantor brasileiro que mais vendeu calcinhas na face da terra. Faço este prólogo não para reverenciar o menestrel dos corrimentos genitais, cuja morte ocorreu esta semana. É que a música não me sai da cabeça desde então. Sempre que um cantor morre, ainda que seja um ícone da música brego-romântica (uma espécie de produção musical estritamente comercial, quase sempre de baixa qualidade, mas que acerta na veia das pessoas, droga que é), o meu dia fica afetado. Profundamente. 
Um dos livros que li e mais me fizeram remexer sobre a cadeira foi “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago. Ah, se eu pudesse escrever daquele jeito... Inspirado em Saramago e no fato de que nenhum de nós faz ideia do por que estamos metidos nas agruras deste mundão véio e sem portera (apesar do que pregam os padres, os pastores e as videntes endinheiradas), plagiei parcialmente o título daquele escritor português. 
Quando se fala uma asneira, sempre que se diz algo de forma irrefletida, comenta-se que o sujeito “morreu pela boca” ou então que “em boca fechada não entra mosquito”. Em meados dos anos sessenta, no auge da fama, da bajulação e da idolatria, John Lennon afirmou que os Beatles eram mais famosos que Jesus Cristo. 
Depois que a imprensa divulgou a aparente prepotência do líder da mais transformadora banda de roque de todos os tempos e o povão começou a espatifar e incendiar seus discos de vinil em praça pública, John tentou retroagir, desmentir o que dissera. Mas, como ele não era um deputado brasileiro depondo à comissão de ética, firmou no golpe e assumiu a balela. Com a fé dos outros não se brinca, João.  
Quando Júlia me perguntou se eu acreditava em Deus, eu respondi “depende”, a resposta mais evasiva e covarde que pude usar naquele instante. Visivelmente nervosa com mais uma de minhas esquivadas às perguntas capciosas, minha filha adolescente quis saber então qual era a minha religião. “Minha religião é a música”, respondi assim, na bucha, convicto como um suicida. 
Volta e meia, o debate acerca da existência ou não de um Deus Criador e Mantenedor do Caos Universal esquenta as turbinas da nossa ignorância, agitando os ânimos aqui e acolá. Estou desconfiado que Deus não seja o sol, nem a lua, nem o trovão, muito menos o velhinho barbudo bonachão de voz empostada igualzinha ao Cid Moreira e que flutua sobre uma nuvem. Deus deve ser música. Desde o canto do sabiá até o guri que cantarola embaixo do chuveiro enquanto brinca com um patinho de borracha. Ignorância não é brinquedo, meu irmão, é drama. 
Muitos empolados vão bradar aos quatro cantos que este cronista aqui deve estar lesionado das faculdades mentais, e que este mesmo energúmeno faz uma espécie de choça demoníaca ao blasfemar contra os dogmas mais sagrados, como se ridicularizasse a fé alheia. Não se trata de pilhéria, creiam. Falo sério. As combinações de notas musicais mantêm-me firme na lida, como se o ser humano realmente tivesse conserto. 
Se um dia eu estiver preso atrás das grades ou numa cadeira de rodas, pálido imóvel como um vegetal desidratado, absolutamente entregue à boa vontade de terceiros a colocarem pão e água na minha boca (como fez o Messias), além de lavarem as minhas nádegas em sinal de higiene e misericórdia (tal e qual também fez o Nazareno, ao assear os pés dos doze discípulos, inclusive Judas, o mais traíra do bando), por favor, toquem boa música para acalmar o meu espírito, se é que de fato ele exista. 
(Em meus devaneios, em minhas solitárias teorias existencialistas, eu penso que, na verdade, a força motriz que me faz levantar da cama diariamente e tolerar a intolerância do meu semelhante, seja algum tipo de energia essencial de origem desconhecida que, em breve, a ciência decifrará, através de testes enzimáticos complexos em câmaras de vácuo, tubos de ensaio e com o mister dos camundongos, a qual dissipar-se-á completamente após a derradeira badalada cardíaca. Sabem o que seja “Alma”? A lembrança gostosa de alguém que já partiu. Isto sim deve ser alma. Acredite se puder, ou torça pelos camundongos, ou funde a sua própria igreja.) 
Voltando à música, eu extraí fragmentos do cancioneiro de Lennon, McCartney e George (o mais místico dos três) e montei a minha própria bíblia. Segue abaixo parte do meu evangelho particular, o qual será objeto — eu imagino — de injúrias, difamações, ameaças, fogueiras e maldições. Seja como for, Júlia, leia com atenção e esqueça tudo. Ou não. Deu pra entender, filhinha?! 
Versículo I — Tudo o que você precisa é amor.

Versículo II — O amor é velho. O amor é novo. O amor é tudo. O amor é você.
Versículo III — Eu não me importo muito com dinheiro; dinheiro não pode me comprar amor.
Versículo IV — Eu te amo oito dias na semana.
Versículo V — Todas as pessoas solitárias, de onde elas vêm? Todas as pessoas solitárias, de onde elas são?
Versículo VI — Nós podemos realmente viver um sem o outro?
Versículo VII — Lá vem o sol! E eu digo que está tudo bem.
Versículo VIII — Eu estarei lá e em todo lugar. Aqui, lá e em todo lugar.
Versículo IX — Eu sou ele, como você é ele, como você sou eu, e nós somos todos juntos.
Versículo X — Todas as crianças boas vão para o céu.
Versículo XI — Então, no final, o amor que você leva é igual ao amor que você dá.
Versículo XII — Deixa eu te levar, pois estou indo para os Campos de Morango. Nada é real, e não há nada com que se preocupar. Campos de Morango para sempre!
Versículo XIII — Dia após dia, sozinho na colina, o homem com sorriso tolo permanece perfeitamente calmo, mas ninguém quer conhecê-lo. Eles podem ver que ele é somente um tolo e ele nunca dá uma resposta.
Versículo XIV — A longa e extensa estrada que leva até a sua porta jamais desaparecerá.
Versículo XV — A vida é muito curta e não há tempo para intrigas e brigas, meu amigo.
Versículo XVI — Eu olho para vocês todos e vejo que o amor está dormindo.
Versículo XVII — Você ainda vai precisar de mim? Você ainda irá me alimentar quando eu tiver 64 anos de idade?
Versículo XVIII — Ele é um autêntico homem de lugar nenhum, sentado na sua terra de lugar nenhum, fazendo os seus planos de lugar nenhum para ninguém.

Fonte:EBERTH VÊNCIO-http://www.revistabula.com/posts/colunistas/

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